Vincent Bevis: “Não poderia explicar nada do presente sem abordar o que tinha acontecido naquela época”


[Foto: Martinus Rimo]

Vincent Bevins é um jornalista norte-americano que cobriu o Sudeste Asiático para o Washington Post, noticiando a partir de toda a região e prestando especial atenção às consequências do massacre de 1965 na Indonésia. Neste seu livro relata, analisa, enquadra e explica o papel que o método usado no massacre na Indonésia em 1965 teve (e tem) na configuração da ordem mundial no século XX e ainda hoje.
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P-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «O Método Jacarta»?
R- Em 2017, saí do Brasil para cobrir o Sudeste Asiático para o Washington Post, morando em Jacarta. Meu trabalho era um jornalismo convencional bastante convencional – eu deveria cobrir a política contemporânea lá para uma audiência global. Mas imediatamente descobri que não importa qual história que você fez na região, e em especial na Indonésia, a história dos assassinatos em massa de 1965 estava à espreita debaixo da superfície. Você não poderia explicar nada do presente sem abordar o que tinha acontecido naquela época e confrontar a verdade que ainda é tecnicamente ilegal revelar na Indonésia. Então, duas outras coisas aconteceram. Percebi que muitos amigos no “Ocidente”, basicamente os países do Atlântico Norte, não tinham a menor ideia do que havia acontecido em 1965. Isso incluía jornalistas internacionais de grande nível. E, em segundo lugar, percebi que esse episódio horrível tinha ligações com países onde eu conhecia as pessoas e as línguas, lugares como Brasil e Chile e Guatemala. Então decidi que poderia tentar contar essa história, de uma maneira muito global, que deixasse claro o quão importante era para a história do século XX.

P-O método Jacarta é uma forma sistemática e estruturada de eliminar movimentos comunistas e de esquerda que os EUA desenvolveram durante dezenas de anos. Podemos dizer que é uma situação autorizada por administrações republicanas e por administrações democratas. Será por isso que conseguiu ser ocultada durante tanto tempo?
R- Acho que você tocou numa dinâmica importante na política dos EUA. O que consideramos “político”, o tipo de questões que são ferozmente debatidas na nossa democracia, são as coisas sobre as quais os dois partidos não concordam. Essa é uma pequena faixa de tópicos no centro de nosso espectro ideológico que se torna objeto de discussão e domina a atenção do público, porque os democratas e os republicanos têm posições diferentes. Portanto, a maior parte dos nossos limitados conhecimentos de política externa emergem desse processo. A Guerra do Vietname tornou-se notoriamente uma questão política doméstica para os Estados Unidos, razão pela qual dominou nosso conhecimento do Sudeste Asiático a partir de meados da década de 1960. Pese embora todos os funcionários da política externa dos EUA no início da década de 1960 concordassem que a Indonésia era de longe o mais país importante, um assunto muito maior na Guerra Fria, do que o Vietname. Depois da sua presidência, Richard Nixon foi rejeitado pela generalidade da classe política e acho que é por isso que descobrimos tanto sobre a intervenção dos EUA no Chile de 1970 a 1973. E há uma quantidade enorme de intervenções estrangeiras nas quais nunca pensamos, porque elas surgiram de uma abordagem que gozava de consenso bipartidário.

P-As principais potências ocidentais tomaram alguma medida para impedir, atenuar ou denunciar a situação?
R-Antes e durante o assassinato em massa de aproximadamente 1 milhão de pessoas na Indonésia em 1965, de esquerdistas e esquerdistas acusados, as potências ocidentais tomaram medidas significativas para encorajar e ajudar os militares indonésios na execução do programa de extermínio. As potências ocidentais queriam criar um confronto entre os militares bem armados e apoiados pelo Ocidente, e o muito popular, mas desarmado Partido Comunista da Indonésia, e seus partidários. Assim que ocorreu esse embate, as potências ocidentais ajudaram a reproduzir e propagar a história da propaganda difundida por Suharto, que vilanizou a esquerda e possibilitou o massacre. Os Estados Unidos lidavam com listas de pessoas a serem mortas. A Grã-Bretanha auxiliou nas operações de propaganda. Os militares indonésios aparentemente fizeram o que fizeram porque acreditavam que seriam recompensados ​​depois – com o reconhecimento de sua ditadura nascente, com ajuda externa e com investimento – e foram recompensados ​​exactamente dessa maneira. Os principais meios de comunicação do Ocidente comemoraram isso como uma grande vitória.

P-A sua pesquisa para este livro que novos factos identificou que permitem uma melhor compreensão desta situação?
R-Basicamente, fiz duas coisas para escrever este livro. Peguei em todas as pesquisas que foram feitas por académicos especialistas e activistas corajosos, ao longo de várias décadas, peguei na narrativa que emergiu desse trabalho e coloquei-a no contexto mais amplo possível inserindo-a na história global do século XX . Em segundo lugar, fiz mais de uma centena de entrevistas, principalmente a sobreviventes da violência em 1965 e 1966, para estabelecer em que é que o Movimento do Terceiro Mundo acreditava, o que eles estavam a tentar alcançar – essencialmente, por que foram esmagados – e, precisamente como experienciaram a realidade dessa repressão. O que realmente aconteceu, a nível humano. Acho que o primeiro exercício permitiu-nos fazer algumas novas ligações, entender como a Indonésia moldou os resultados na América Latina, noutros lugares do Sudeste Asiático e em África. E acredito que o segundo exercício permite que pessoas comuns se liguem com esta história como algo que realmente aconteceu com pessoas reais – que é o que é. Fiquei muito surpreendido e grato aos académicos que começaram a usar o livro nas universidades, mas eu realmente não esperava isso. Este livro foi escrito para leitores regulares sem nenhum conhecimento especial.


um ponto importante que tento
mostrar no livro: o movimento
anticomunista global aprendeu
com uma experiência num país
e depois exportou-a para outro,
até que houvesse uma caixa de
ferramentas bastante grande
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P-Além da Indonésia, as intervenções tiveram uma expressão global: Portugal esteve alguma vez em foco como potencial alvo, designadamente em 1974 e 1975?
R-Acho importante reconhecer que a maior parte do que chamo de “Método de Jacarta” foi empregado no Sul Global, nas partes do mundo que haviam sido previamente colonizadas formalmente. Porque penso, fundamentalmente, que o livro trata de uma táctica que foi empregada na construção de um novo sistema global, no qual os Estados Unidos assumiram um papel que antes era exercido por potências da Europa Ocidental e desenvolveram um conjunto de técnicas para moldar resultados em todo o mundo num novo contexto. Trata-se da transição para uma ordem neocolonial, para falar no sentido mais amplo possível. O meu foco particular está nos vinte e dois países onde o assassinato em massa intencional de esquerdistas, ou esquerdistas acusados, foi realizado, geralmente como parte da construção de regimes capitalistas autoritários aliados ao Ocidente na Guerra Fria. Muito disso ecoou o que aconteceu na Europa na primeira metade do século XX, é claro, e alguns desses assassinos inspiraram-se no fascismo europeu. Mas os Estados Unidos certamente estavam muito interessados ​​nos resultados políticos na Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial e intervieram muitas vezes na região para moldar a ordem que surgiu lá também. Em 1974 e 1975, os Estados Unidos interessaram-se profundamente pelos resultados potenciais e pelo resultado final dos eventos em Portugal.

P-E teve influência no processo de ocupação e, depois, na independência de Timor Leste?
R- Um dos crimes mais terríveis cometidos pela ditadura de Suharto, possibilitado pelo assassinato em massa de 1965-1966 na Indonésia, foi cometido em Timor-Leste 10 anos depois. Mais uma vez usando o roteiro anticomunista, jogando com a possibilidade de uma tomada “comunista” na pequena meia ilha, a Indonésia invadiu Timor-Leste após a retirada portuguesa. Essa decisão, apoiada pelas potências ocidentais, resultou na morte de até um terço da população nos anos que se seguiram. Este foi um crime da Guerra Fria comparável, na proporção da população nacional eliminada, aos cometidos pelo governo do Khmer Vermelho no Camboja.

P-O método Jacarta foi abandonado ou ainda hoje temos alguma evidência da sua utilização?
R-Não acho que nenhuma grande potência na história, identificando-se ou não como impérios, jamais “abandonou” uma técnica que foi útil no passado. Este é um ponto importante que tento mostrar no livro: o movimento anticomunista global aprendeu com uma experiência num país e depois exportou-a para outro, até que houvesse uma caixa de ferramentas bastante grande disponível. O que você vê é o acumular de técnicas possíveis. Ao mesmo tempo, o contexto global é muito diferente agora do que era na Guerra Fria. Há uma configuração geopolítica diferente e, na verdade, um conjunto maior de maneiras possíveis de os Estados Unidos intervirem para moldar os resultados do que no século XX. Mas, ao mesmo tempo, nos anos desde que escrevi O Método de Jacarta, a questão da retórica anticomunista violenta tornou-se mais importante do que eu esperava. Só aqui no Brasil, onde moro, vemos em Jair Bolsonaro um exemplo de como ideologias que pareciam mortas e enterradas – como a defesa do regime militar aqui e o extermínio violento de esquerdistas – podem aparecer mais uma vez como grandes forças. É por isso que essas técnicas, tanto físicas quanto retóricas, realmente funcionam e podem ajudar as forças dominantes de uma determinada sociedade a enfraquecer ou eliminar os desafiantes. Depois de passar tanto tempo a falar com vítimas na Indonésia, no Chile e na Guatemala, não acho que devamos presumir que isto “nunca mais vai acontecer” ou que foi “uma coisa do passado”. Muitas dessas vítimas pensavam exactamente isso, nos anos 50, 60, 70 ou 80, antes de se provarem tragicamente que estavam errados.
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Vincent Bevins
O Método Jacarta
Temas e Debates  19,90€

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