Vergílio Alberto Vieira: “Sem partir nunca lá chegaremos”

P-Desde 1980 (data do seu livro A idade do fogo) até hoje, como caracteriza o seu processo poético?
R-A dar ouvidos à sabedoria popular beirã, nada de subestimar o ditado que recomenda: “Antes de colher, cospe às mãos.”; já, no Minho, não esquecer que: “Em casa de letrado, ninguém se faça rogado.” Duarte Faria, o promissor ensaísta de Outros sentidos da literatura (1980), por essa altura precocemente desaparecido das letras portuguesas,  antecipou, no prefácio à edição de A idade do fogo (1981), não tanto o percurso que me estava reservado, mas o itinerário do nómada, ao assinalar a passagem do “signo do vulcânico ou incandescência projectada” de Terra interior (1987), um dos livros ficados pelo caminho, para “o signo da chama, a chama que ganhou raiz e lentamente alastra, a incandescência reproduzida”, génese do que considerava já, não só o meu “dicionário poético”, mas sobretudo: “o modo de (me) movimentar na nossa história”. História literária, deduziria eu, décadas depois. O caminho, ficava à vista, seria longo, como longa viria a ser a progressão cujas transmutações radicariam numa poética dos elementos, firmada em experimentações  poéticas, que se multiplicariam gradualmente, indo da assumida “estética de fragmentação” inicial à “circularidade perfeita”, vector identificado no prefácio assinado por Rosa Maria Martelo, na edição de Coágulos (2001), cartografia poética, que incluiria em volume:  A adivinhação pela água (1990) e O caminho da serpente (1993), sintonizada, segundo reconhece, não com “o êxtase” para que apontaria “a comunhão com o cosmos”, mas com “o êntase”, próximo de “um plano de imanência” capaz de romper com “os limites” da trajectória que se propõe, segundo uma evidência revelada em devir – desiderato do que, de facto, viria a acontecer. Passado o período de reclusão, que vai de 1993 até finais de 1999, esta espécie de “era da suspeita” veio provar que Pessoa lá sabia que razões o terão levado a concluir que: “Nunca a vida se desmente”; e, se é certo, que também comigo se cumpriu o vaticínio, ao ponto de cada livro passar a ser o livro, não o livro que todos andámos a escrever, como pressagiou Borges: cada livro tornou-se o livro em que terei o nome escrito até ao dia em que será apagado – Caput mortuum (2020), por mais que, para lá do fim, possamos ser lembrados, à sombra, e sob a égide de Camões, quando anteviu que: de nos desprezarmos nos prezemos muito.

P-Os seus mais de 25 livros têm um fio condutor ou perseguem novas abordagens de livro para livro?
Quando, aí pelo final dos anos 70, Eugénio de Andrade (então a águas termais, na recôndita Caldelas, onde dizia morrer de pasmo), recompensando-me de lhe ter dado a ler Terra interior (1978), me ofereceu o seu exemplar de Quarenta anos de servidão (Jorge de Sena, tinha acabado de falecer com 58 anos de idade), lembro-me de ter dito, com irreverência própria de um jovem condottiero: “Por este andar, nunca poderei dizer – como Jorge Luis Borges – que: (…) na juventude as palavras vêm em nosso auxílio”, deixando-o  a pensar que também ele tinha “servido a poesia”, apaixonadamente, merecimento só tarde (e mal) reconhecido como o de Jacob no soneto de Camões. Decorridos 50 anos sobre a edição de um primeiro livro a que, sem ter consciência do que me esperava, dei o título de: Na margem do silêncio (1971), o que agora me ocorre adiantar é que esta: compilaçom de tôdolos livros, excepção para os que não resistiram à queimadura do “sal grosso”, que os fez ficar para trás, não é mais que a vontade (ingénua como a de uma primeira vez) de passar ao papel os sinais indeléveis da lição de Propertius: “Com um remo, tocar a água; com o outro, a margem do rio.” O fio condutor, porém, não demorou a tornar-se, de livro para livro: “fio de Ariadne” sujeito a cortes, emendas e rasuras, tal como na vida, essa  vida cujos axiomas, na versão do brasileiro Raduan Nassar – Prémio Camões em tempo de compensação – carecem de leitura crítica, sob pena de nos perdermos no caminho.

P-Quais são, do seu ponto de vista, os grandes eixos e temáticas da sua poesia?
R-Tal como na roda da fortuna, os eixos e as temáticas entrecruzam-se, ao ponto de os mecanismos requerem, da parte do poeta, engenho  que garanta original reelaboração da tradição literária; experiência na elaboração estrutural do livro, enquanto mero capítulo do todo da obra; inventividade na dinâmica a imprimir ao(s) movimento(s) de idealização, concertados com o rigor rítmico, com a musicalidade da frase/do verso; aprofundamento de técnicas discursivas próprias, ajustadas à categoria essencial do discurso; intensidade verbal compatível com as conjecturas simbólicas em jogo e com as configurações verbais que nos propomos. Já sobre as temáticas, e sem perder de vista que a emoção é, acima de tudo,  aquele estado de alma a que se aspira – sublinharia Lévinas, evocando Scheler –  enquanto meio de “acesso ao valor”, seja-me permitido acrescentar: do homem, da obra, do mundo, não fosse caso tratar-se da função reveladora que nos ajuda a viver (de afectos, leituras, viagens), ao mesmo tempo que nos implica(m) no ser, quer através da religiosidade, quer da razão de existir e pensar em conformidade com o acto criador, epifania potenciadora de expressão de vida, como lhe chamou o meu homónimo, Vergílio Ferreira, em Espaço do invisível.

P-Neste processo de revisão para esta edição da Obra Poética em 2 volumes teve a tentação de fazer alterações profundas aos originais publicados ou respeitou os textos e as suas datas?
R-Ao contrário de Santo Antão, não resisti às tentações, consequências do(s) efeito(s) colaterais, tanto da língua em que se escreve,  como no quadro das limitações formais da linguagem – influentes, sem dúvida, na ética do valor moral e estético da escrita – não apenas à luz da mediação interpretativa exercida pelo leitor, que temos obrigação de ser de nós, mas em função da autocrítica e da velocidade de rotação dos dispositivos retóricos adoptados – alteradores do gosto estético de cada época e geração. O que ficou foi o que escapou à podoa de Ockham, primeiro; e à rasoira do seareiro, depois, em: Todo o trabalho toda a pena (2016), no âmbito da parcimónia valorizada por Gil de Carvalho, poeta e ensaísta, no posfácio à edição de A imposição das mãos/ Escolha poética (1999). Como em La chambre claire (1980) anota Roland Barthes, a propósito da fotografia: “Quando já não existirmos ninguém o poderá testemunhar para além da indiferente natureza.” Ora, esta obsessão pela rasura, pelo perfeccionismo, pela captação de águas vivas no âmago da escrita, explicam, e de que maneira, a vontade do poeta em: “testemunhar um futuro anterior”, isto é: em dar visibilidade ao que ainda se mantinha sob ocultação aquém do visivelmente verdadeiro. Depois, reescrever (reescrever não apenas a modernidade como alguém disse) até ao limite das nossas/ da minha possibilidade(s), praticando a arte do palimpsesto, que o mesmo é dizer: do que fora sendo em nós reflexo de antigas representações – o que me parece ser já (da) ordem do passado: evidências que se foram revelando pouco a pouco.

P-Numa obra tão vasta com quase 30 livros, à data de hoje, qual o seu livro preferido?
R-A questão transporta-me (nos), necessariamente, para o domínio de sublimação, a ponto de sermos levados, como Ícaro, a ignorar o sol, de que não cuidou, a tempo, para suster a queda. Correndo o risco de, à maneira dos discípulos de Sócrates, confundir o Mestre com os seus despojos, nenhum destes livros terá escapado, do ponto de vista da concepção, ao anacronismo, que a Prof.ª Cristina Robalo Cordeiro identificou no prólogo à edição de: Não vos torne a noite escura (2019), porventura o mais elaborado de todo o conjunto, apesar de: Caput mortuum, o último dos 3 inéditos, que compõem as 700 páginas de: Novos trabalhos novos danos, retomar o processo anterior. Não obstante, e apesar da tendência de levar cada livro a fazer parte do todo, não raro o todo se presta a ser tomado pela parte, consentimento tornado “tempo presente” ou “tempo trabalhado” – lidos, segundo a docente coimbrã, por Bachelard em Mallarmé , procedimento a que conduziu a aventura poética que, como o canto das sereias, me convocaria, enquanto poeta, para novas descobertas, sabendo, como o épico, que sempre que nos metemos em “novos trabalhos” nos esperam “novos danos”, cumprindo-se a odisseia de sermos confrontados com novos perigos, novas decepções.

P-Para novos leitores que queiram agora entrar no mundo da sua poesia que livro (ou livros) recomendaria?
R-Acho que foi Gogol que, num desses momentos em que o pensamento, nascido da experiência de vida, soa como um toque de alvorada, terá dito que: “Sem partir nunca lá chegaremos.” Iluminado, ou não, o poeta cuja principal obrigação se deve compaginar com o legado de Terêncio, quando este preconiza que: “Nada do que é humano” nos deve ser/ deixar indiferente(s), não andarei longe da verdade se, por esta, ou outra razão, admitir que, ante a barbárie de que o mundo já nem sequer se envergonha, escrever poesia é bem mais que consagrar a vida ao desejo de contribuir para a (sempre adiada) nova ordem do mundo, salvar o planeta, congregar afinidades electivas –  respeitáveis premissas, embora – porque escrever poesia nem será sequer consumar um desejo de eternidade, o que até seria legítimo, mas favorecer a tendência natural do homem à condição de agente de humanização. Mas não diziam os antigos que um tocador de lira será sempre um mau poeta? Eis porque, e talvez por isso, talvez não: “escrever” venha a ser, como advertiu Duras: “gritar sem ruído”. Quanto a mim, e apesar de ter consciência de que reunir, em livro, 50 anos de servidão (ainda que amorosa), não é o mesmo que dispor do que se é, do que se escreve, como quem – diz Agustina em: As pessoas felizes (1975) – faz da amizade: “(…) um depósito bancário.” Escrever poesia é antes, e pelo contrário, fazer prova de vida sem que alguém no-la tenha exigido; desafiar o que deve ser pedido à juventude, convidando-a a elevar-se à altura de si mesma, ou como disse Herberto Helder, embora de outro modo: “(…) fazer brilhar um montão de tripas” como se o poeta (ele disse: o autor), ele-mesmo (digo eu): “não fosse o poema”.

P-Ary dos Santos dizia… que um poeta nasce por si próprio e depois faz com os outros. Quem são esses outros no seu caso?
R-Faz-se por si, o poeta, e aos 10 anos, como há largos anos deu conta Maria Alberta Menéres. À maneira do que aconteceu com a grande poesia de todos os tempos & lugares, dos Livros Sagrados às Epopeias, das Civilizações Antigas às épocas de Ouro, através das quais a história dos povos confiou aos poetas o estatuto de portadores de esperança, quisera eu que assim fosse, mas a matéria do universo poético – tal como a astrofísica, a quântica, as matemáticas – não deixam de surpreender, fazendo jus aos defensores da docta ignorantia dos doutores da(s) igreja(s). Depois veio a modernidade, e a seguir a ela as vanguardas, eventualmente o pós-modernismo, mas o poeta, qual “guardião das metamorfoses” evocado por Canetti, em A consciência das palavras (1976), passou de “estratego das transgressões, ordenador do caos, criminoso passional” a obscuro fiel do armazém global, adianto eu, que o mesmo é dizer: a ajudante de guarda-livros de lendários patrões Vasques, a soldo de quem o poeta de Orpheu escrevia cartas-comerciais para destinos europeus onde a pestilência financeira já, ao tempo, respirava os maus-ares dos subterrâneos da mundialização, onde  a indústria da cultura tratava o poeta como “rês de matadouro”, termo caro ao romancista de Volfrâmio (1943). Esses outros com quem me fui fazendo aprendiz sem mestre (sejam eles: os clássicos greco-latinos, os românticos ingleses (e, só mais tarde, T.S. Eliot – il miglior fabbro, não outro), os modernistas, os poetas de vanguarda; a poesia francesa de Rimbaud a René Char; a poesia americana de Walt Whitman a Wallace Stevens, de e.e.cummings a Sylvia Plath; os poetas de língua castelhana: de Lorca a Octavio Paz, de Machado a Jorge Luis Borges; os poetas de língua portuguesa: de Miranda e Camões a Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, de O’Neill a Herberto Helder; os brasileiros: de Drummond a João Cabral de Melo Neto, de Ferreira Gullar a Alexei Bueno, e tantos, tantos – esses outros foram, afinal, todos os que me ensinaram a resistir à morte,  predispondo-me para a sobrevivência poética ao crepúsculo dos deuses/ das deusas, que por aí vegetam a expensas de uma cobertura mediocrática, que lhes enaltece os livros que não vendem aos leitores que não têm.  “La poesía no busca la imortalidad sino na resurrección”, garantiu Paz. Acreditei nele, em tempos, mas o Terceiro Dia já lá vai.

P-Apesar destes 2 volumes serem designados Obra Poética, acreditamos que vai continuar a escrever: o que tem em mãos?
R-Entrado para a galeria dos decanos (serrados, diria o Zé do Telhado), e como escrever já não é o verbo intransitivo (ou estará ainda a ser?) com que Roland Barthes coroou de glória “o brio do texto”, em Le plaisir du texte (1973), boas razões me assistem para (cor)responder à significância criativa, activando meios indispensáveis para o que virei a escrever na lápide do reduto final (sarabá, Dinis Machado), não já como produto, mas como produção criativa – sem declinar da experiência adquirida à banca do aprendiz-de-feiticeiro, irremediavelmente inconformado com o acabamento da sua artesania. Depois de levar aos extremos a missão de frustrar o Olimpo, cumprindo a tarefa de Sísifo de que me incumbi ao reunir pela última vez – suspeito! – 50 anos de livros, reescrevendo até à exaustão tudo o que foi letra de imprensa desde 1980, sob o título também camoniano de: Todo o trabalho toda a pena (2016) – edição agora apresentada com três inéditos: Integrais/ 25 sonetos tomados de Camões; O templo em forma de montanha/ Homenagem a Matsuo Bashô; Caput mortuum – talvez não exagere se me for permitido considerar que é chegada a hora de viver os anos que me restam sem outro propósito que não seja fazer o manguito à posteridade e a quanto possa contrariar o direito de dar curso à vontade de não fazer nada, afinal, e sem dramatizar: exercer o direito a que Harold Bloom chamou de: “benefício essencial da leitura profunda.” Isto, porque começa a fazer-se tarde, na minha vida, para condescender com o mundo que, raras vezes, foi condescendente comigo (não poder vir a ter irmãos, guerra colonial, perda dos pais, frustração profissional, incompreensões familiares, repetidas traições de amigos por quem dei a cara sempre que devia), ocorrências, quando não devastadoras, suficientemente danosas, insidiantes ao ponto de nos sentirmos esmagados pela mó perversa com que o diabo nos foi amassando o pão de cada dia. Por questão de pudor, e só por isso, que pode, repetiria o poeta de Photomaton & Vox (1979), qualquer: “(…) sombrio filho das gramáticas”, em fim de linha, esperar senão que o deixem em paz, a falar com os seus botões e a distribuir migalhas aos pássaros que ainda me visitam às primeiras horas da manhã?
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Vergílio Alberto Vieira
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