Vergílio Alberto Vieira: “Planuras vergonhosas da escrita”

1-Qual o lugar deste diário no contexto da sua obra?
R-Correndo o risco de transformar o lugar da diarística no contexto que vai fazendo dos meus livros (poesia, ficção, teatro, ensaio/ crítica) matéria-prima da obra que escrevo, e não escrevo, direi que a edição de Um passo antes da morte constitui o não-lugar daquilo a que Kafka chamava “planuras vergonhosas da escrita” (Diários, 23 de setembro de 1924), ao as/sumir-se como cenário da representação sobre a qual, mais tarde ou mais cedo, cairá o pano, obrigando o auditório, de que sou parte, a bater em retirada. Kafka falava d’O Processo (1925), confessando que “só daquele modo se pode escrever”, com tal “coerência”, com “tal abertura de corpo e alma”. Pelo que me diz respeito, nem isso, apesar de se tratar da 6.ª incursão no género, processo literário iniciado com Destino de Orfeu (1987) e, criminalmente(!) prosseguido pelo reincidente em A invenção do adeus (1994), Minha mulher a solidão (2015), Minha ex-mulher a solidão (2020), Rei exilado (2022), porque, e como comentaria o apóstata: tudo o que é dito pelo diarista, em Um passo antes da morte, é real menos o que pensa.

2-As entradas do diário são um registo para memória futura ou uma forma de ir recordando?
R-Sylvia Plath, numa página de diário, escrita a 10 de abril de 1021, revelou ter: “(…) de tomar nota dos sintomas de doença”, que a visitavam, para, da vez seguinte, “melhor os reconhecer”.  Jorsy Rubin, citado já não sei por quem, queixava-se de que “a memória lhe devorava a fala”, o que me vai começando a acontecer, mercê da p.i. que não dá abébias ao mais pintado dos artistas. Partindo do princípio de que, tal como acontecia à (ainda) jovem autora de The bel jar (1963): “Estamos sempre irrevogavelmente sós.” (Diários, 1950-1962, Relógio d’Água Editores, 2021, trad. de Jorge Vaz de Carvalho), porque com frequência: “(…) a vida nos parece tão tortuosamente agradável” (op. cit. p. 537), com a minha idade “a ponderação” começa a ir-se-à-viola, isto é: tende a parar, bloquear, sufocar-nos – palavras dela – a ponto de “a leitura parecer zombar de nós”, sendo recomendável suster “os passos”, desfrutar, enquanto é tempo, “da relação do amor”, “manter-nos vivos”, sem dar de barato ”uma aura de poder místico” (op.cit. p. 325) que nos possa servir de pedra bíblica onde reclinar a cabeça, e esperar a hora – a mesma que “fugia vivida” ao poeta de Indícios de Oiro –  não aconteça, como os artesãos de panu di terra caboverdianos, possa ensarilhar-se o panu di terra, no tear dos dias, e a lançadeira nos escape da mão, ao ponto de perdermos o fio das malhas que o império tece, senão as do império da escrita, as do império dos sentidos, mesmo quando “a melancolia dos outros”, assinalada por Sylvia Plath, atenua os anos cinzentos  do nosso descontentamento.

3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Em dia com o diário referente a 2024, prosa bárbara a que será dado o título, tragicamente actual, de A Casa dos Expurgos, estou a rever uma peça de teatro, iniciada em 2010, e desde essa altura entaramelada nos tamises da lavaria crítica, cujo protagonista é D. Sebastião, prisioneiro dos qui-pro-quos históricos, que se seguiram ao desastre de Alcácer-Quibir, esperteza saloia do pseudo-dramaturgo que sou, a braços com a crise, não tanto da literatura contemporânea, mas com a crise do “juízo literário” crónico já assinalado, em La littérature à l’estomac (1950), por Julian Gracq.
__________
Vergílio Alberto Vieira
Um Passo antes da Morte|Diário 2022-2023
Rosmaninho Livros de Arte, 2024

Vergílio Alberto Vieira na “Novos Livros | Entrevistas