Vergílio Alberto Vieira: “Como a faca de Kafka na alma do sobrevivente”

1-O que representa no contexto da sua obra literária o livro “Minhas Cartas Nunca Escritas”?
R-Com a memória prestes a tornar-se a muralha ameaçada de ruína pela erosão do tempo, já não recordo – terá sido Michaux? – onde terei lido o episódio a que recorro para ilustrar o embaraço do amanuense que se meteu a reescrever “Minhas cartas nunca escritas”, quinze anos depois de editado? Consta que, vindo um velho barbo (bardo se a aliteração o permitir) a descer o rio, em direcção à foz, se cruzou com dois jovens peixes, que o subiam, a caminho da nascente, quando, trocadas as devidas saudações, o idoso lhes perguntou “que tal estava a água” nesse dia lá para jusante, não chegando, devido à celeridade da corrente, a ouvir a reposta. Passado um momento, terá o mais novo dos escaladores da ocasião, pedido esclarecimento ao companheiro de viagem, por não ter percebido a pergunta do solitário navegante da corrente contrária, não se coibindo de se mostrar ignorante acerca do que era, na verdade: “essa coisa da água”, que tanto preocupava o ancião. A biografia romanceada, agora dada à estampa, em segundas núpcias editoriais, constitui uma peça-charneira na novelística do livricultor que, por obstinação, ou dever de ofício?, já não tomará andadura. Incursão biográfica (autobiográfica, porventura) em domínios que vão: da poesia à diarística; da ensaística à dramaturgia, passando pela literatura infanto-juvenil, “Minhas cartas nunca escritas”, o livro em causa, terá entrado no coração do sujeito-que-escreve (vulgo autor) como a faca de Kafka na alma do sobrevivente, cruelmente torturado pelo rodar da navalha, ao ponto de se tornar, como diria Melo Neto: “uma faca só lâmina”.

2-Qual a ideia que esteve na origem deste romance?
R-Em se tratando de “um livro de adeuses”, como refere, no prefácio, o Prof. Ernesto Rodrigues, o realismo (poético, creditado em certas páginas) que se perfilou no horizonte do sub/scritor deste romance envergonhado foi, não tanto resultado do desejo de exorcizar a turbulência biográfica de quem foi à(s) guerra(s), mas o confronto consigo próprio, decorrente da chamada à barra da geração enrascada (anterior à geração-rasca, que tanta polémica gerou), demonstrativo de todo (e qualquer) esteriótipo estrutural, estético, e de linguagem, enquanto resposta frontal ao establishement   que precede o quadro literário, que o antecede, e a exposição que deu a conhecer o desafio lançado ao autor por certo tipo de literatura (pós-modernismo, segundo o chavão), não sem futuro, mas de futuro incerto, aliás como tudo na vida, no momento em que poucos arriscam pronunciar-se sobre descodificação da incógnita, irresolúvel porventura, de saber: para onde vai a literatura. Por outro lado, e sob a perspectiva de se apresentar como leitura do sujeito ao texto que ele próprio representa, Minhas cartas nunca escritas confirma premonição mirandina de que todos somos a súmula de “uma vida aos dados jogada”, isto é: uma vida a que as 22 Cartas do Tarot, capitulares da obra, em vez de tranquilizar, contribuem para agravar o estado de impaciência que faz de cada um de nós o tabuleiro onde o coup de dés verte o destino de quem “cá ande”.

3-Pensando no futuro que está a escrever neste momento?
R-Que é o futuro, a não ser o rosto oculto do homem sem qualidades cuja principal qualidade é não reconhecer-se no presente, e não reconhecer o rumo insólito do mundo entregue às mãos das prepotências reinantes dos tiranos?, sem pensar no futuro, mas pensando-o. Pensando no futuro, continuo a idealizar livros que nunca escreverei, ou como concluiu Marguerite Duras, em Écrire (1993), a conspirar contra mim mesmo, uma vez que: “estar só com o livro não escrito é estar ainda no primeiro sono da humanidade.” Ah, e sobre o que, de momento tenho em mãos. Fazendo jus ao autor de Le silence des livres (2006), e rompendo com “a amnésia generalizada”, que tanto preocupara George Steiner, e continua a grassar como um fogo interior, tenho vindo a tentar frustrar a maldade global que fecha a cadeado, não os livros, como nas bibliotecas monásticas da Idade Média, mas a(s) mentalidade(s) devastada(s) pelos extremismos ideológicos, políticos, religiosos, filosóficos, etc. tornados capacho da sociedade do espectáculo até à derrocada final. Presentemente, prossigo (leia-se: persigo) o oitavo volume do diário iniciado com Destino de Orfeu (1987); revejo a peça  teatral, finalmente acabada o verão passado, texto dramático entregue, há pouco, à Companhia de Teatro de Braga, a encenar no Theatro Circo, lá para março de 2026; e, tendo acabado de ultimar a tradução de Four Quartets, de T. S. Eliot, a sair em breve, tenho estado a postos para levar a cabo uma versão livre (quer dizer: não literal) para português del Cántico, de San Juan de la Cruz, consumando um desejo espiritual que me servirá de salvo-conduto para a inadiável viagem que se aproxima. Servindo de epílogo a esta entrevista, seja-me permitido evocar Séneca, a fim de esclarecer que: quanto mais nos enganamos no caminho, mais nos precipitamos com ardor – dizia ele – no alcance da felicidade. Da felicidade?, só por ironia, porque a haver ardor no alcance de alguma coisa, só se for no ardor da vida; da vida literária, quando muito, e por acréscimo.
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Vergílio Alberto Vieira
Minhas Cartas Nunca Escritas
Rosmaninho  12€

Vergílio Alberto Vieira na “Novos Livros” | Entrevistas

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