Vergílio Alberto Vieira: A solidão na companhia de outros autores
1- Apesar da indicação (“Diário 2014-2018”) este livro é muito mais que um diário, não é verdade?
R- A dar como provado que o diarista (e diaristas são, afinal, todos os que vão à luta com o real quotidiano) é um homem com uma teoria na cabeça – e, portanto, segundo Bertold Brecht: “um homem perdido”, este quarto título de um género, em regra considerado menor, salva-me da sentenciosa aleivosia blanchotniana que, em Livre à venir (1959), chega ao ponto de reconhecer que: “(…) o escritor só pode manter o diário da obra que não escreve.” Como não se me ajusta à cara a máscara do diarista compulsivo – não há, de resto dois diaristas iguais – a julgar pelas experiências de escrita, que antecedem esta recolha: Destino de Orfeu (1987), A invenção do adeus (1994), Minha mulher a solidão (2015), o processo de literário em questão responde, em parte, a/e por enunciações de carácter individual, dificilmente catalogáveis nas áreas discursivas (poesia, ficção, teatro e ensaio/crítica) que fui explorando, ao longo de décadas, quer pelo modelo de expressão fragmentária adoptado, quer pelo subentendimento, não tão discreto como desejaria, no que se refere a conjecturas de ordem pessoal: vazio emocional, dispositivos retóricos em falência técnico-literária constante, degradação histórica (e ética) progressiva(s) – tópicos de uma contemporaneidade vítima de desmandos políticos e ambientais confi(n)ados à guarda de um certo canibalismo tribal levado à prática por regimes ditatoriais em todos os tempos e lugares .
2- Este livro é, também, uma testemunha de muitas leituras de outros autores: quem o acompanhou?
É verdade, não apenas em relação a Minha ex-mulher a solidão/ Diário 2014-2018, mas praticamente a todos os meus livros editados a partir da viragem do século. À maneira das viagens do Grão-Vizir da Pérsia Abdul kassen Ismael (séc. X), que carregava 117 mil livros em 400 camelos treinados, segundo Manguel, para caminhar no deserto por ordem alfabética, as circunstâncias (desculpa minha), umas vezes, e enquanto reincidente no domínio da crítica de livros (JN, Expresso, entre 1989-2000), espécie de leitor agrilhoado, outras, tornei-me parceiro (in)desejável, quando não abusivo, ante (certos) mentores desse consentimento que devia ser exclusivo da essência moral do homem, mas não é, porque fui/ se vai ficando à mercê de dispositivos fatais, de convenções artísticas duvidosas, de mediações interpretativas falíveis, e até concorrentes de processos ideológicos obscuros, de estéticas efémeras, de correntes artísticas infra-literárias, para falar grosso. É que, em nos faltando qualidades para dar curso à mestria daquela: “(…) fúria grande e sonorosa” do épico, ou mais modestamente: “(…) ao esplendor aos pés da beleza”, sabiamente idealizado por Yourcenar, em Memoires d’Hadrien (1951) , resta-me render culto a autores de cabeceira como Miranda, Pessanha, Eça, Brandão, Herberto Helder e Vergílio Ferreira; e aos de fora: Blanchot, Borges, Musil; George Steiner, Agamben; e aos da casa: José Gil, os Lourenços (o das Heterodoxias e o da Grécia revisitada): oh quão injusto sou para com os não nomeados – além dos filósofos, dos músicos, dos pintores – sem querer passar culpas aos tempos de mediocracia em fim de linha que, cada vez mais, globalmente vem sendo moeda corrente.
3- Pensando no futuro, o que está a escrever?
A menos que o futuro não tenha começado no momento em que escrevo (talvez porque ser e devir são por si só, afinal, provas irrefutáveis do presente), depois da travessia do inferno, que parece estarmos a querer ignorar, o que me ocorre dizer é que, a partir de há uns tempos a esta parte: “(…) há coisas – adiantou Arnold Schöenberg em carta a Adorno, acerca da música, aquando da tomada do poder pelos nazis: “mais importantes que a música”. No caso, coisas porventura mais importantes que a literatura. Estando o mundo, por menos que se queira, a viver uma situação-limite verdadeiramente devastadora, ninguém poderá esquecer, por mais optimista que seja, que: “isto não é vida”, tal como admitiu o dramaturgo grego Dimitriadis em Morro como país (2005), que o mesmo é dizer: já não é pelo mundo que “os sinos dobram”, mas por uma humanidade com a cabeça a prémio, cujo estigma é muito mais sobreviver, não somente hoje, mas: “amanhã, quando muito depois de amanhã”, para recordar o que Brodskii, o poeta a quem os tribunais soviéticos, durante a Guerra Fria, qualificaram de “parasita”, por se ter apresentado em tribunal com a profissão de poeta. À beira de perfazer 50 anos de edição, e com o fim da minha vida já a pontuar a linha de horizonte, começo a ter de pagar “todos os meses”, volto ao russo, o direito de existir, razão pela qual espero, desfeiteando os deuses com persistência de Sísifo, repetir a experiência editorial a que chamei: Todo o trabalho toda a pena/ Obra poética (2016), com diferente título, a que se devem juntar : Cleptopsydra (2018), Ex Po Ex (2019) e Não vos torne a noite escura (2019), ligeiramente retocados, e com os inéditos: O templo em forma de montanha/ Homenagem a Bashô e Integrais/ 25 sonetos tomados de Camões, deixando à poesia a incumbência de fazer perdurar a minha presença no mundo, como para Borges: “(…) más allá de nuestro olvido”.
__________
Vergílio Alberto Vieira
Minha Ex-Mulher a Solidão
Edição Crescente Branco