Vasco Gato: Poesia total
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Grande título, Vasco. É sempre contra nós que falamos, principalmente no que pensamos serem os dogmas que nos regem. Seremos supérfluos? “diz-me que há ainda versos por escrever,/que sobra no mundo um dizer ainda puro.” A nossa resposta é não, claro. Seremos muitos? “o luar pode desfazer/a solidão de um nome”, sim, somos sozinhos. Assim nascemos e morremos, dentro de um corpo fronteiriço de outros “ensina-me de novo a ter mãos”, inteiro mas incompleto até chegar aos outros e “explodir como uma vogal”. Somos sós na multidão até alguém “os nossos pés habitaram sempre o triz do precipício.” E quando nos apercebemos disso chegámos à conclusão “que não houve tempo antes de nós”. Mesmo assim as dúvidas e a necessidade premente do outro “promete-me que no fim terei existido.” Quanto mais não for para confirmarmos a indecisão de ser certo vivermos, “claramente se entende/ que todas as coisas/foram tocadas”. Nem sempre da mesma maneira, nem sempre com ternura ou violência ou vagar ou concentrados. Por vezes fogos-fátuos “é que um pássaro, ao partir, carrega em si a paisagem”, será que é isso o vazio, a vontade de partir ou ficar parado face a lugar nenhum? “Há em cada um de nós uma espécie de eternidade amordaçada” que só consegue falar em momentos mágicos, simples, lindos e fugazes, quase sem existir, como se fossemos feitos de nada, como quando “se escolheu a cor do mar”.
Isto só no primeiro livro “Um Mover de Mão”, onde se descobrem coisas por descobrir e que, afinal, talvez nunca venham a ser descobertas:
“haverá talvez um lago que a noite não toque”
“haverá talvez um suor que não o do sacrifício”
“haverá talvez uma fala onde nós poderemos encontrar”
E seguimos em frente porque não há outra forma de lidar com isto.
Continuamos pelo interior, pelo “Imo”, onde “no pulso/parece crescer uma pequena solidão.” Não sabemos porque aqui estamos, parece embuste, mas “para o silêncio nascemos/e para uma certa música interior” onde dançamos ao nosso ritmo quando nos conseguimos ouvir, o que pode ser rara condição. Porque “o silêncio tem vozes sem nome” e “um passo mais e a solidão será real.” Raios me partam se não é isto que sinto quando à noite me justifico e nada me consola a não ser “olhar devagar” para o mundo, perder o medo, reagir. Porque “há na tristeza um perigo de terminar”, mas também uma esperança de conseguirmos viver com isso, apesar de tudo. Fugimos dos outros e de nós “onde fica essa ilha a que só chegamos por naufrágio?” Onde fica o sítio de sermos nós? Talvez na coragem de enfrentar o impossível “fui chamado para proteger o vulcão”. Quem diria da fragilidade tamanha força? E ainda vou na página 50 de tantas, mas quem está a contar quando se sabe que “tudo o que nos fulmina, cresce devagar.” E não adianta ficar à espera da ansiedade, “não há data para o assombro”, não há data para nada, mesmo que assim o pensem todos vocês. Não há também destino nem porto de abrigo quando “apenas/o sangue nos serve de/bússola.” E nem o movimento liberta “o meu nome é um barco encalhado/no vento”, porque sabemos onde ficar quando partimos e não somos nada sem viagem, como o não somos à chegada a lugar nenhum. “Chega-se tarde/ao que se ama.”
E sempre nesta viagem, passageiros de tudo o que nos transporte para além de sermos, “É preciso espreitar consecutivamente/o mundo.//Não há ponte entre duas margens,/só quem habita a corrente/pode aspirar a todas as moradas.”
Ainda nem a meio quando me deparo com o que já sabia sem o saber “não desistirei de exercer a minha ignorância”, até porque o poder de nos sabermos pouco excessivos é enorme, Juvenal e tal.
Sempre assim pelo livro fora, sem descansos, sem cansaço, alegria pura “tenho uma estratégia infalível para implementar a primavera.”
Vou acabar para descansar, ou então encontrar-te na esquina do poema, “beija-me, beija-me com o fogo das noites em branco.” E, sem descanso: “para que nada se exclua das tuas ancas.”
Temos “barcos de vidro nas veias” e assim somos Odisseu dentro de nós, temos “um desajeitado modo de ter mãos”, mas somos carícias desesperadas.
No fundo “não somos mais do que um verso ao acaso”, “anjos desnorteados”, porque “o que eu habito é a minha vulnerabilidade”.
Havia muito mais a dizer, mas como tudo é uma história de amor: “Talvez se salve qualquer coisa./Uma voz que seja. A tua.”
E como se tudo faltasse, não falta nada. Poesia total.
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Vasco Gato
Contra Mim Falo
Imprensa Nacional Casa da Moeda 25€