Van Gogh é uma convulsão
CRÓNICA
| Susana Cristina Sousa
Há livros que marcam pela positiva, outros pela negativa. Livros que nos libertam das palavras, esvaziando e desinfectando as vísceras. Há também aqueles que nos doam palavras e legam ideais; que depositam na nossa mão um Estandarte Maior, compelindo-nos a rasgar avenidas amplas e luminosas. Há, depois, os livros que corroem certezas e verdades. Alimentam o desconforto e a estranheza que, de repente, revestem todos os nossos poros.
Estes começam a ser os meus favoritos. Estes. Os que nos confrontam connosco próprios, colocando-nos frente a frente com aquilo que acreditamos (ou fingimos) ser e nos deixam irrequietos e agitados. Incomodados.
Van Gogh – o suicidado da sociedade não é um livro fácil nem tão pouco simpático ou agradável.
Artaud, actor, dramaturgo, poeta e artista plástico, tornara-se sobretudo um louco – “(…) doido referenciado e catalogado (…)”.
Galardoado com o prémio Saint-Beuve, na categoria ensaio, “Artaud surpreendeu. Saía do seu abismo para habitar verdades mal reconhecidas pelos juízos “normalizantes”, a falar de si com o pretexto de outro como ele, suicidado pela hostilidade geral (…)”.
Van Gogh é uma convulsão. Um Manifesto contra a Normalidade Social e os Asilos de Alienados.
Com clareza e precisão acutilantes, Artaud explica-nos o que é um “alienado autêntico”. “É um homem que preferiu ficar doido, no sentido em que socialmente o entendemos, a envergonhar uma certa ideia superior de honra humana. // Por isso a sociedade mandou estrangular nos seus manicómios todos aqueles de quem quis livrar-se ou defender-se por recusarem ser cúmplices com ela (…). // Porque o alienado é também o homem que a sociedade não quis ouvir e quis impedir de formular [eu acrescentaria, e de expor] verdades insuportáveis.”
(Mais tarde, Foucault explicou tão bem o porquê dos hospícios e das prisões.)
Nove anos em asilos.
Meses de internamento compulsório, mais 365 dias por opção.
Rodez.
Arles e Saint-Rémy
“Agressividade inofensiva”, puro exibicionismo para com os outros.
Violência auto-infligida e suicídio.
Delírio. Paranoia. Loucura. E, estranhamente, uma lucidez fervilhante capaz de atemorizar a “norma”.
Antonin Artaud (1896-1948).
Vincent van Gogh (1853-1890).
Quem é quem?
O que é, afinal, a loucura? E a normalidade?
“Nunca ninguém escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, inventou, sem ser para sair realmente do inferno (…)”.
Citando Van Gogh: “Desenhar o que é? Como se lá chega? É o acto de abrir passagem através de uma parede de ferro invisível que parece colocada entre o que sentimos e o que podemos. Como deve atravessar-se tal parede, pois de nada serve bater-lhe com força, uma tal parede deve ser minada e atravessada à lima, lentamente e com paciência, na minha opinião.”
Em 1959, André Breton diz à La Tour de Feu: “O grito de Artaud – como o de Edvard Munch – parte das cavernas do ser”.
Eu pergunto, quantos gritos ensurdecedores trazemos estrangulados cá dentro todos os dias…
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Antonin Artaud
Van Gogh. O Suicidado da Sociedade
Sistema Solar 11€