Uma saúde com tratamento prolongado
A saúde está na ordem do dia: os protestos são constantes, muitos utentes consideram que Portugal se caracteriza por serviços insuficientes, demorados e, por fim, cada vez mais caros. O custo dos serviços públicos de assistência médica não pára de crescer, acentuando a convicção (aspiração?), sobretudo na área política, de que o sistema é insustentável.
O poder económico, apesar dessa aparente improbabilidade de lucros, infiltra-se na política e mostra-se persistente na intenção de controlar a área da assistência médico-medicamentosa. O défice do sistema público torna estranha a proliferação de estabelecimentos de carácter privado, que sempre procura o lucro, um pouco por todo o país, dos hospitais aos lares para a terceira idade – e muitos com características luxuosas.
Não faltaria a cereja no topo do bolo, nessa corrida a um sector que tem tudo para dar certo em matéria de dividendos. Se as empresas privadas já tinham acesso à gestão dos serviços públicos, com dinheiros públicos e maus resultados económicos, e nem sempre com louváveis sucessos médicos, agora surgiu uma proposta, em tempo aberto à revisão constitucional, no sentido de alterar a matriz do Serviço Nacional de Saúde.
Bom ou mau? Não faltará quem se pronuncie pela mudança. E é por isso que emerge, aqui e ali, a voz de quem releva os progressos da saúde em Portugal, da taxa de cobertura da população aos principais índices de morbilidade e mortalidade. Mesmo de tratamentos de vanguarda, sejamos claros.
Trata-se, aqui, de chamar a atenção para um livro, nascido como tese de mestrado na Universidade do Porto, em que os temas da saúde, na vertente histórica, mas não só, de 1955 a 1974, são analisados nas suas relações com o poder – o Estado Novo, entenda-se, com tudo o que isso implica.
Trabalho académico, que é, esta investigação definiu como problemática a constatação de que a classe médica portuguesa adquiriu um progressivo poder institucional na sociedade portuguesa, a partir dos anos 50 do século passado. O autor sublinha que, abordando particularmente o caso dos médicos, o processo foi extensivo a outras profissões da saúde, nomeadamente enfermeiros e farmacêuticos.
A relação de forças que determina a assistência médica em Portugal não se limita, no entanto, à situação vivida no país. As movimentações internacionais no estudo dos problemas da saúde, em que se destaca a fundação da Organização Mundial de Saúde (OMS), acabam por pressionar o Estado Novo no sentido de introduzir melhoramentos.
Esta obra exemplifica com dados publicados internamente, em que as carências se apresentam gritantes, como, por exemplo, a mortalidade geral que, de 1947 a 1957, baixa dois pontos, de 13,5 para 11,4 por mil; ou a mortalidade infantil que cai, no mesmo período, mais de 20 pontos, de 107,3 por mil para 88 por mil. E mais flagrantemente diminuiria, na década de 60 e subsequentes, até aos dias de hoje em que tão duramente atacada é a política de saúde.
“Portugal suscitou a atenção desse organismo sanitário internacional [OMS], essencialmente porque tinha alguns dos piores indicadores de saúde da Europa, numa altura em que a saúde pública se torna um problema dos Estados”, constata o autor. Consequência: “Enquanto membro da OMS, o Estado português acaba por reconhecer a necessidade de proceder a mudanças profundas na assistência sanitária da população, materializadas num esforço que se consubstanciou lentamente ao longo de várias décadas”.
O sentido positivo na evolução é registado, nesta obra, com o crescimento da população abrangida pelos serviços médico-sociais da Previdência Social, de 334.500 beneficiários e pessoas de família, em 1951, para os mais de sete milhões de 1975; ou a evolução da despesa pública em percentagem do PIB, que salta de 0,9% em 1960, para 4,25% em 1980.
Trata-se de um salto qualitativo pouco pacífico, esse durante o Estado Novo, segundo o que fica descrito: “Talvez o maior impacto da OMS esteja no reconhecimento internacional do direito à saúde”. Mas, ressalva-se, “para a utilização plena dos resultados da ciência e da tecnologia, o campo em que se movia a medicina liberal tornou-se demasiado estreito, limitando a utilização social das possibilidades que a moderna medicina apresentava (nos anos 70)”.
Só que, “algumas iniciativas de intervenção social que partiam da iniciativa de médicos foram sempre vistas com alguma reserva por parte do governo por serem consideradas inconvenientes para o regime”, conclui o historiador.
Aqui temos uma abordagem que, com base na história de um processo corporativo e político, em simultâneo, nos leva ao que temos hoje. E para compreendermos as benesses, defeitos, dificuldades e facilidades é preciso muitas vezes perceber as razões que nos pressionaram e conduziram. E assim aconteceu, também, com os médicos.
O poder económico, apesar dessa aparente improbabilidade de lucros, infiltra-se na política e mostra-se persistente na intenção de controlar a área da assistência médico-medicamentosa. O défice do sistema público torna estranha a proliferação de estabelecimentos de carácter privado, que sempre procura o lucro, um pouco por todo o país, dos hospitais aos lares para a terceira idade – e muitos com características luxuosas.
Não faltaria a cereja no topo do bolo, nessa corrida a um sector que tem tudo para dar certo em matéria de dividendos. Se as empresas privadas já tinham acesso à gestão dos serviços públicos, com dinheiros públicos e maus resultados económicos, e nem sempre com louváveis sucessos médicos, agora surgiu uma proposta, em tempo aberto à revisão constitucional, no sentido de alterar a matriz do Serviço Nacional de Saúde.
Bom ou mau? Não faltará quem se pronuncie pela mudança. E é por isso que emerge, aqui e ali, a voz de quem releva os progressos da saúde em Portugal, da taxa de cobertura da população aos principais índices de morbilidade e mortalidade. Mesmo de tratamentos de vanguarda, sejamos claros.
Trata-se, aqui, de chamar a atenção para um livro, nascido como tese de mestrado na Universidade do Porto, em que os temas da saúde, na vertente histórica, mas não só, de 1955 a 1974, são analisados nas suas relações com o poder – o Estado Novo, entenda-se, com tudo o que isso implica.
Trabalho académico, que é, esta investigação definiu como problemática a constatação de que a classe médica portuguesa adquiriu um progressivo poder institucional na sociedade portuguesa, a partir dos anos 50 do século passado. O autor sublinha que, abordando particularmente o caso dos médicos, o processo foi extensivo a outras profissões da saúde, nomeadamente enfermeiros e farmacêuticos.
A relação de forças que determina a assistência médica em Portugal não se limita, no entanto, à situação vivida no país. As movimentações internacionais no estudo dos problemas da saúde, em que se destaca a fundação da Organização Mundial de Saúde (OMS), acabam por pressionar o Estado Novo no sentido de introduzir melhoramentos.
Esta obra exemplifica com dados publicados internamente, em que as carências se apresentam gritantes, como, por exemplo, a mortalidade geral que, de 1947 a 1957, baixa dois pontos, de 13,5 para 11,4 por mil; ou a mortalidade infantil que cai, no mesmo período, mais de 20 pontos, de 107,3 por mil para 88 por mil. E mais flagrantemente diminuiria, na década de 60 e subsequentes, até aos dias de hoje em que tão duramente atacada é a política de saúde.
“Portugal suscitou a atenção desse organismo sanitário internacional [OMS], essencialmente porque tinha alguns dos piores indicadores de saúde da Europa, numa altura em que a saúde pública se torna um problema dos Estados”, constata o autor. Consequência: “Enquanto membro da OMS, o Estado português acaba por reconhecer a necessidade de proceder a mudanças profundas na assistência sanitária da população, materializadas num esforço que se consubstanciou lentamente ao longo de várias décadas”.
O sentido positivo na evolução é registado, nesta obra, com o crescimento da população abrangida pelos serviços médico-sociais da Previdência Social, de 334.500 beneficiários e pessoas de família, em 1951, para os mais de sete milhões de 1975; ou a evolução da despesa pública em percentagem do PIB, que salta de 0,9% em 1960, para 4,25% em 1980.
Trata-se de um salto qualitativo pouco pacífico, esse durante o Estado Novo, segundo o que fica descrito: “Talvez o maior impacto da OMS esteja no reconhecimento internacional do direito à saúde”. Mas, ressalva-se, “para a utilização plena dos resultados da ciência e da tecnologia, o campo em que se movia a medicina liberal tornou-se demasiado estreito, limitando a utilização social das possibilidades que a moderna medicina apresentava (nos anos 70)”.
Só que, “algumas iniciativas de intervenção social que partiam da iniciativa de médicos foram sempre vistas com alguma reserva por parte do governo por serem consideradas inconvenientes para o regime”, conclui o historiador.
Aqui temos uma abordagem que, com base na história de um processo corporativo e político, em simultâneo, nos leva ao que temos hoje. E para compreendermos as benesses, defeitos, dificuldades e facilidades é preciso muitas vezes perceber as razões que nos pressionaram e conduziram. E assim aconteceu, também, com os médicos.
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Rui Manuel Pinto da Costa
O poder médico no Estado Novo (1945-1974)
Afirmação, legitimação e ordenamento profissional
U. Porto editorial, 27,16€