Um romance emblemático do século XXI

CRÓNICA
| agostinho sousa

Que mais pode ser escrito sobre um livro considerado um dos romances emblemáticos do século XX e obra prima do autor?
Enfim, graças a um amigo (de leituras recentes), cheguei a este livro de 700 páginas que retrata – como se pode verificar em qualquer pesquisa sobre o mesmo – as aspirações de um jovem, órfão desde os sete anos e a cargo de tios, austeros e provenientes de um meio profundamente religioso e atávico, com um problema físico numa perna, que tentará libertar-se de tais amarras, mal tenha idade para isso, fugindo de todos as convenções que o rodeiam e vidas pré destinadas, traçadas mesmo antes de existirem, pela vontade de se instruir.
Essa independência e aventura, como quando diz: “Estou farto de me preparar para a vida: agora quero vivê-la.”, próprias de um jovem ansioso por tudo abarcar, levá-lo-ão a saltitar por diversas cidades, outros ambientes e culturas, relacionando-se com pessoas diferentes e em circunstâncias bem diversas, aprendendo pelo trabalho e pelo estudo em matérias bem antagónicas. A esta amálgama juntem-se vicissitudes com que será confrontado e que lhe proporcionarão inesperados reveses, para o bem e para o mal da sua existência.
Todos estes planos de liberdade e aventura serão postos em causa pela paixão intensa e, tantas vezes, inexplicável, por uma mulher totalmente diferente e que fará dele, tantas vezes, um joguete.  Porque em Philip Carey, alter ego do autor na sua juventude, resistem a bondade e a caridade de fundamentos religiosos que assimilou em criança. “Embora tivesse posto de lado os dogmas cristãos, nunca lhe passou pela cabeça criticar a ética cristã; aceitava as virtudes cristãs e, na verdade, considerava até louvável praticá-las por si mesmas, sem pensar em recompensas ou castigos.” divinos.
A leitura é, muitas vezes, intensa e obriga a persistir para estar a par do sucedido. Isso também leva a tomarmos uma posição, ajuizando com os nossos pré-conceitos e valores, perante as circunstâncias e, fundamentalmente, sobre aquela estranha e perversa mulher que, a páginas tantas, se torna desprezível.
É deste conflito entre o desejo, tão intenso que se torna inexplicável, e a vontade de ser livre que altera conceitos e coloca dúvidas sobre tantas das certezas que por vezes temos como absolutas, que vive a sua leitura. Como refere Virginia Woolf no seu diário: «Arte é despojar-se de todo e qualquer dogmatismo».
É essa ânsia de viver que está permanentemente em cima da mesa. Como quando outra personagem, diz: “Não atribuo uma importância exagerada ao meu trabalho poético. A vida está aí para ser vivida e não para se escrever sobre ela. O meu objetivo é explorar a diversidade de experiências que ela oferece e extrair de cada momento o sumo da emoção. Eu vejo a minha escrita como uma concretização graciosa que não absorve, antes adiciona prazer à existência. E quanto à posteridade… que se dane a posteridade.”
Por fim, entre todas as vicissitudes por que passará, Philip Carey obterá algo que não tinha perspetivado, dando razão à fuga inicial de uma vida pré-estabelecida. E há uma pergunta que sintetiza a visão da vida, as dúvidas e certezas que vamos construindo ao longo dela, e a capacidade de poder alterar destinos tido como certos:
– “Mas porque é que acha que veio a este mundo?”
Espinho, 30/06/2023
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Somerset Maugham
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