Um livro sobre a melancolia da infância
CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha
Ou de como escrever um romance e ficar sem vida social, o isolamento versus a vida com os outros, uma crítica aos turistas como consumidores de cidades (não seremos todos turistas nesta passagem por aqui?), da verdadeira constatação que se vive num mundo onde não se pode ter opinião, com o risco de sermos vítimas de insultos ou pior. Trata-se de um livro na primeira pessoa com a escritora fechada durante uma noite num museu na pouco sereníssima Veneza – o museu de arte contemporânea na Punta della Dogana. Um elogio do silêncio “o que não dizemos pertence-nos para sempre”, da contenção e do decoro. Mas também uma crítica à facilidade da arte contemporânea ao mesmo tempo que começa a entender alguma dessa arte com a alma de artista e a elogia e critica de novo – curiosamente uso como marcador do livro um bilhete de Serralves. E a propósito de coincidências, leio Tolstói logo antes de Leïla descrever a sua infeliz morte e leio os poemas envelope da “rainha reclusa” que Slimani descreve como exemplo do isolamento dos escritores: Emily Dickinson.
É também um livro sobre a melancolia da infância, as mulheres de Marrocos e os artistas: “todos têm a ambição insana de agarrar o que se move”.
Saber o que rezam as promessas, o desejo de ter fé, mas não o querer ao mesmo tempo, os objectos que são prisão do passado e que desaparecem como as pessoas, as cidades e o mundo: como Sarajevo onde “à época, era desaconselhado usar vermelho ou outra qualquer cor viva, pois atraíam os tiros dos snipers. Para o artista Anri Sala, o cerco de Sarajevo foi isto também: 1395 Days without Red.” É por isso que Etel Adnan diz que “já não vemos as catedrais como via quem as construiu. Isso exigiria um considerável esforço cultural de visão – não é porque um edifício se ergue diante de nós que o vemos.”
Nada restará de nós, mesmo com a pequena esperança do mundo actual “o homem se ilude quando acredita ter deixado vestígios”, então o que nos resta? A literatura, a poesia: “a literatura não serve para restituir o real, serve para preencher vazios, lacunas”. “A literatura faz acontecer o futuro, devolve-nos às florestas claras da infância.” O futuro é o passado amanhã.
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Leïla Slimani
O Perfume das Flores à Noite
Alfaguara 16,45€