Susana Peralta: Encontro, desigualdade e futuro

1-Como é que olha e interpreta um fenómeno tão vasto e abrangente como esta pandemia?
R- Do ponto de vista económico, a pandemia é um choque terrível porque as economias funcionam no encontro. É no encontro que trabalhamos, viajamos, produzimos, compramos e vendemos. O medo do vírus inibe o encontro e, desse modo, limita a economia. Assim nasce uma crise terrível, que em Portugal nunca tínhamos visto, ou melhor, temos de recuar aos anos 40 para ter uma crise desta dimensão (e nem sequer podemos verdadeiramente comparar porque na altura medíamos a atividade económica com outra metodologia) Mas não é só isso. As pessoas realizam-se também pessoal e emocionalmente no encontro. Logo, esta crise tem impactos grandes na saúde mental, que por sua vez é determinante na capacidade de as pessoas se projetarem no futuro. Uma crise desta dimensão verdadeiramente inédita despertou o que temos de melhor, quando a humanidade conseguiu inventar vacinas em poucos meses para nos proteger deste vírus. Mas também mostrou movimentos muito egoístas, de falta de solidariedade internacional e no interior de cada país. Em Portugal, fomos dos que menos gastámos para fazer face à crise, ajudar quem foi mais prejudicado. Isso é um falhanço coletivo da nossa sociedade que optou por partilhar de forma muito modesta a conta terrível que alguns estão a pagar pela crise.

2-Sobre a pandemia: a principal consequência foi só o que chama de «terramoto da desigualdade»?
R- A crise tem várias consequências: uma quebra brutal do PIB, uma diminuição da esperança de vida, limitação de acesso a cuidados de saúde para doentes não covid, o terrível impacto na educação, na saúde mental das pessoas, o colapso do modo de vida urbano. A questão é que quando olhamos para estes vários aspetos, vemos que estão muito desigualmente distribuídos na população. A desigualdade não é uma consequência da pandemia. Ela existia, estava presente. Procuro explicar isso no livro. A pandemia tornou essa desigualdade mais visível, muitas vezes, mas não sempre, porque a  agravou. A pandemia é um choque para a economia com características muito especiais. Expõe uma série de pessoas a riscos de saúde, como os chamados trabalhadores essenciais dos setores da distribuição, industrial e agro-alimentar, que continuaram a trabalhar. Muitas destas pessoas recebem salários baixos e é por isso especialmente injusto que transportem às costas, com risco de saúde, o que de mais essencial flui na economia.  Mas também fechou parcial ou totalmente muitos setores que concentram salários mais baixos, níveis de qualificação menos elevados, contratos a prazo, estes últimos penalizando muito os mais jovens. Estas pessoas não arriscam a saúde física (já a mental está obviamente em risco), mas perdem uma parte importante do seu rendimento. O livro “Portugal e a crise do século” contém o resultado de vários trabalhos que fui desenvolvendo ao longo deste ano, com vários colegas, que quantificam essas evidências. Por outro lado, a forma como muitas atividades económicas escaparam à crise foi passando para o trabalho remoto, para os canais digitais de venda de bens e serviços. No livro também mostro  evidência, mais uma vez recolhida por estudos em que fui participando ao longo deste ano de que esse tipo de possibilidade está concentrado em pessoas de rendimentos mais elevados e maiores níveis de educação. Portanto, esta crise tem características (pelos setores mais afetados, pela forma como algumas atividades puderam continuar) que a torna profundamente desigual. E assim se destaparam as desigualdades existentes.

3-Fala-se muito de números. Mas, na sua opinião, o que está verdadeiramente em causa são as pessoas. Como economista consegue ter uma visão prospectiva sobre o futuro da vida das pessoas?
R-Os números são muito importantes. Mas por detrás dos números há sempre pessoas. Felizmente, hoje em dia, conseguimos ter mais números para caracterizar essa diversidade. Portanto eu gosto de números para além da média, que esconde sempre realidades muito heterogéneas. É por isso que, no livro, falo dos vários estudos em que olhamos, por exemplo, para os números dos inscritos no IEFP para diferentes grupos da população, por categorias de idade, por género, por nível de educação. Ou caracterizamos a composição da mão de obra dos setores mais atingidos pela crise. Para além de saber que os setores da restauração e alojamento foram muito atingidos pela crise, interessa-me muito perceber quantas pessoas com determinados níveis salariais existem nesses setores, quantos imigrantes, quantos trabalhadores temporários. Assim conseguimos abrir um bocadinho a caixa escura da média e perceber as tais realidades heterogéneas que se   escondem por detrás dela. Mas na verdade gosto sempre de tudo com números. Acho que são úteis, temos é de afinar, procurar ir mais fundo, ter um ou mais números para cada tipo de pessoa, em vez de as tentar resumir todas, com tudo o que têm de diferente, num só número.
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Susana Peralta
Portugal e a Crise do Século. O Terramoto da Desigualdade
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