Suplicantes de Ésquilo
CRÓNICA
| Susana Cristina Sousa
Sempre tive dificuldade em ler teatro. As peças programáticas nunca me pareceram apelativas.
Gil Vicente ainda vá que não vá. Poder ler palavrões vernaculares em voz alta, para toda a turma, e, ainda por cima, com autorização do professor, era segregador de adrenalina e sabia a excitação de “noite pré-visita de estudo” passada em claro.
Seguiu-se Garrett… Rezei, pedi ferverosamente uma tuberculose que pusesse término àquele suplício infligido pelo Ministério da Educação. As minhas preces não foram atendidas.
Nunca fui exemplo de serena perfeição e docilidade. Adepta medíocre de tarefas domésticas, para mim, plenitude era jogar à bola, ler em êxtase os romances de Dumas ou ver dois filmes de enfiada no cinema (poupava nas senhas do autocarro, não na parcela da mesada destinada a actividades lúdicas…).
Todos os esforços da minha avó para que aprendesse croché, ponto-cruz (pelos vistos, o avesso tem que ficar igual ao direito!?!) e me tornasse numa menina prendada e aprumada revelaram-se infrutíferos.
A Mulher Anjo do Lar (só o Romantismo poderia conceber tal coisa!!) fazia-me correr, em fuga alucinante, como o Diabo da cruz.
Por fim, Luís de Sttau Monteiro. “Felizmente há luar!”… Também não.
Mais tarde, bem mais tarde, eis que surge o teatro de forma concreta e prática. Corpo emprestado a um outro, figurinos, trabalho de cena, trabalho de actor, improvisação, bater texto!… Ah! Agora sim!
Decido experimentar Brecht, Goldoni, Tchekhov e também dramaturgos contemporâneos, actuais. No final, sempre o mesmo sem sabor…
Em Agosto, tropeço na página web do Grupo de Teatro Amador da ACE que “Ao longo de todas as edições [tem] partido quase sempre de textos originais escritos propositadamente para as equipas que nele participam. (…) [Contudo,] este ano o ponto de partida [foi] bastante diferente, [decidiram trabalhar] a partir de um dos primeiros textos de que [há] registo, as Suplicantes de Ésquilo. Um texto essencial na dramaturgia do mundo, com uma atualidade estranhamente feroz.”
As Civilizações Pré-clássicas e Clássicas, em especial a Grega, sempre me fascinaram.
Li a peça e o elucidativo estudo introdutório por Martins de Jesus, ao qual se segue a tradução da obra, directamente do grego, pelo próprio.
É quase opressivo (“feroz”) verificar que, passados séculos (de acordo com a maioria dos estudiosos, terá sido escrita cerca de 469/7 a.C.), a mesma continua actual.
Mitos fundadores. A diáspora de uma humanidade. Fuga e pedido de asilo político e religioso. Súplica! Sangue. Dialéctica culpa/castigo e permanente necessidade de expiação e purificação. A condição da mulher. Comparação e diferença em termos morais, religiosos e políticos entre Ocidente e Oriente. Gregos vs Bárbaros. Oposição democracia/tirania. Todas as linhas que supostamente compartimentam, arrumam, e organizam estes signos, não passam de linhas esfumadas que se esbatem. Diluem-se entre significante e significado e, sobretudo, contra o que seria expectável, entre o passar dos anos.
Isso, sim, é assustador!
Edificamos em altura soberba. Cobrimos o corpo animal com tecidos de corte fino variado. A arte é agora digital. Não raras vezes, é imaterial, produto invisível da mente do criador passível de ser comercializado por valores exorbitantes (pelo menos, poupa-se no metro quadrado das, tão em voga!, exíguas habitações metropolitanas).
Analisando o encontro cultural entre estes anos, séculos e milénios passados, surge inicialmente uma espécie de estranheza. Porém, olhando com atenção, vemos que, tal como na trama das Suplicantes, não ocorreu integração. Apenas assimilação.
A casca do fruto faz-nos acreditar que estamos perante uma nova espécie, mas o fruto permanece. É o mesmo. Igual ao de sempre.
Em finais da década de 60 do século V a.C., Ésquilo, num dos primeiros textos de teatro que chegaram até nós, problematiza a questão da liberdade e da responsabilidade que cada acção implica.Em pleno século XXI, Neil Armstrong diria afinal: “permanecemos no Planeta Terra e confirma-se that we keep stuck on the same small step for mankind…” Incrível!
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Ésquilo
Suplicantes
Edição FESTEA