Stephen King no previsível quotidiano
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Dizer que este livro é sobre um casal canibal é, no mínimo, injusto e redutor. A acção, ou grande parte dela, desenrola-se durante a pandemia do coronavirus, assim como – há coincidências macabras – a administração Trump. É de realçar que a maior parte dos negacionistas aqui retratados (conservadores, anti-máscara, “a covid é uma invenção”, anti-aborto) são também trumpistas. Nos seus últimos livros King move-se no “previsível”quotidiano, quanto a mim mais exigente do que os universos já inventados pela sua fabulosa imaginação. Numa conversa alguém diria que são diferentes para diferentes gostos. Eu considero que, apesar de nos movermos em realidades diferentes, as temáticas principais estão sempre lá: as fraquezas humanas, a doença debilitante, o alcoolismo e outras dependências, a relação conturbada entre pais e filhos, o altruísmo, a literatura, o modo de escrever, pequenas pérolas lançadas sem qualquer aparente dificuldade, embora quem escreve saiba que essa é a maior de todas as mentiras: aparentar facilidade nunca o é – compara-se a deslizar pelo gelo quebradiço com duas lâminas afiadas em patins: “mas o talento é um motor desligado. Funciona em todas as experiências não resolvidas, todos os traumas não resolvidos, se preferires, da tua vida. Todos os conflitos. Todos os mistérios. Todas as partes profundas do teu carácter que achas não só um pouco desagradáveis, como repugnantes.”
Por falar em repugnante, também aborda o racismo e tem dois octogenários canibais. Mas é também um livro sobre o envelhecimento: lares, alzheimer e artroses: um parágrafo lindo sobre a doença de alzheimer.
Ainda há tempo para homenagear Bogart e Bacall, assim como a poesia!
“Barbara…deseja ser uma daquelas pessoas que acham que histórias e poemas são tão importantes como ações ou promissórias.”
Eu iria mais longe.
A não perder.
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Stephen King
Holly
Bertrand 20,90€