Somerset Maugham: Não tem grande enredo, não acaba com morte ou casamento, mas…

CRÓNICA
| agostinho sousa

[Fotografia: Yousuf Karsh site] O autor começa por explicar que vai escrever um romance que «não tem grande enredo, não acaba com morte ou casamento» e confessa que vai ser sobre um homem que «não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, da sua passagem pela Terra, vestígio maior do que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas».
Este homem provém da alta sociedade americana e é alguém que põe em causa o seu modo de vida, previsivelmente, confortável, predestinado a um casamento feliz e próspero ao fugir para longe de tudo isso, num oriente muito distante, deambulando posteriormente pela Europa.
Maugham mistura os valores desta alta sociedade com formas de vida, tantas vezes, fúteis com outras vivências e realidade bem díspares, motivando a reflexão sobre os objetivos de vida que cada uma personagens vão tendo. É também um retrato parcialmente autobiográfico enquanto espetador atento de muitas destas situações.
Pelo meio entrecruzam-se outras figuras insólitas, num sul de França bem diferente dessa alta sociedade americana. numa Europa do pós-Primeira Guerra Mundial.
Há falências e heranças, amores e desamores, num meio de abundância que sobrevaloriza futilidades desmedidas e tanto de insólito que a realidade se enriquece ao longo do tempo (e da leitura). Mas a escrita é um trunfo muito forte deste livro e as reflexões que vai subtilmente sugerindo.
A personagem principal consegue manter a sua ousadia de fuga graças à garantida riqueza que o vai suportando; e, entre as suas idas e vindas, encontros e desencontros, sobressai este diálogo com aquela que chegou a ser a sua prometida mulher, iniciado por ela após um encontro ocasional:
«– Não achas que devias contar-me o que andaste a fazer este tempo todo em Paris?
– Tenho lido muito. Oito a dez horas por dia. Tenho ido a conferências na Sorbonne. Creio que li tudo quanto há de importante na literatura francesa, e posso ler o latim, prosa, pelo menos, com a mesma facilidade com que leio o francês. Claro que o grego é mais fácil. Mas tenho um ótimo professor. Antes de chegares ia três noites por semana a casa dele.
– E qual a finalidade de tudo isto?
– Adquirir cultura – respondeu ele, sorrindo.
– Não me parece muito prático.
– Talvez não seja e, por outro lado, talvez seja. Mas é divertidíssimo. Não podes imaginar como é emocionante ler a Odisseia no original. A gente tem a impressão de que bastaria ficar na ponta dos pés e estender as mãos, para tocar as estrelas.»
Por fim, o autor refere que o seu relato é uma gestão de triunfos e apresenta-os em relação aos propósitos de vida de cada um dos personagens. Enfim, viveram, mais ou menos, as vidas que desejaram. Um grande livro. Recomendável.
Espinho, 05/12/2024
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Somerset Maugham
O Fio da Navalha
Edições Asa

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