Só os livros que magoam e esfaqueiam é que têm interesse

CRÓNICA
| Célia Gomes

«O País dos Outros» é um país que gostei de conhecer. Nas suas páginas viajei pelos caminhos da libertação de Marrocos do jugo francês e acompanhei as desventuradas venturas de uma família oscilante, como pêndulo descontrolado, entre o conservadorismo dos costumes Islâmicos e o modernismo Europeu.
Um livro povoado por contrastes civilizacionais, ambivalências, castradas ambições, poeiras, guerras e revoluções, sofrimento e desilusões vividas num ambiente encantadoramente desencantado.
A Francesa Mathilde, guerreira sem elmo, aterra em Meknés inundada de música suficiente para fazer dançar a vida. Música essa que começa a incomodar o marido Amine, com o qual casou em França que, confuso, prontamente a silencia e lhe estrangula os sonhos, embora a ame. Ama-a sem som e sem dança. Será que isso é amar? Amine vive num duro baloiço, sacudido entre a admiração pelos colonos franceses e a inveja sentida pelo fanatismo nacionalista do irmão que «uiva e morde» em defesa de Marrocos. Por sua vez, Mathilde, tanto «quer cobrir Amine de beijos» como o odeia, tendo vontade de fugir desse país que a sufoca, ambicionando «ir ao teatro, ouvir música, dançar na salinha, de receções e chás dançantes». Para seu desalento, a única música que ouve é a do vento a fazer dançar as árvores, lamentando a sua solidão. Solidão que combate cuidando de tudo e todos, menos de ela própria. Solidão que Amine não suaviza por estar focado exclusivamente no desejo de modernização agrícola e de transformar a «terra pedregosa» numa próspera e fértil exploração. Desejo este, que, apesar do seu empenho desmedido, não atinge.  Nada que surpreenda, pois nunca as mãos de um homem soturno e árido conseguirão fazer gerar cor e abundância.
A vida de sua irmã Selma também se desenrola num cenário de ambição e desejo. Selma símbolo de quimera e de grito feminino. Grito que não lhe sai dos lábios, mas da forma firme e ondulante com que caminha, com que olha, com que seduz. Selma que deseja ser levada pelo beijo do rapaz francês que «cada vez que pousara os lábios na sua pele, tivera a sensação que a libertava do medo, da cobardia com que a família a criara». A isso chama-se paixão, cara Selma, e é detonador de explosões, de centelhas e de guerras.
Um livro que contem poeiras que fazem tossir e espirrar. A inofensiva e sonolenta poeira que o velho carro arrasta com o seu passar, e a poeira escura que deu forma aos sonhos de Mathilde. Sonhos que foram caindo por terra, como estrelas cadentes suplicantes que perderam o brilho, substituídas pela realidade de «suportar a solidão e a vida doméstica, aguentar a brutalidade de um homem e a estranheza de um país desconhecido». Ninguém merece este fado…
Em caminhos poeirentos e escondidos, encontramos Omar, a preparar motins e ataques revolucionários. Um Omar que tem asas e diz que “todos nós estamos na prisão. Enquanto vivermos num país colonizado, não nos poderemos considerar livres.» Lamento desiludir-te Omar, nunca nos sentimos verdadeiramente livres. Vivemos numa gaiola dourada, sem teto, presos a convicções e culpas e persuadidos pelo eldorado que nos encurrala e nos impede de voar.  A revolução traz guerra. Guerra   na família, onde cada elemento esconde debaixo da «djellaba», que veste, revoltas e armas, prontas a dispararem   balas  de fúria e raiva. E a revolta é fecundo ventre para o sofrimento, do qual jorra fétido sangue. O sangue das vítimas dos ataques revoltosos nacionalistas.  O sangue derramado pelos cordeiros, na festa de «Eid al-kabir», que Mathilde classifica   como um ritual «de gente cruel». O sangue que escorre na sua face e queixo de quando Amine, lhe esmurra o nariz. Sangue que brota da sua alma ao confrontar-se com uma sociedade em que a mulher tem  que ser silenciosa, dedicada e abnegada, sem rir em público,  sem abraçar , sem exprimir  gratidão ao sol e ao mundo.  Isto não é viver, é apenas existir.
As folhas do «País dos Outros» também são sopradas por ventos gélidos de desilusão. A desilusão de todos em relação a todos – é a paga que todos pagamos quando criamos expetativas!  A desilusão comovente da pequena Aicha, fervorosa católica num mundo islâmico, que vivendo num cenário dominado pela fúria, não divina, mas masculina, pensa que  «Deus só ama os homens e as crianças, estando as mulheres excluídas desse amor universal». Desilusão de Selma, obrigada a casar com Courad e submeter-se à sua titânica força e brutalidade. Desilusão de Omar por o seu irmão, Amine, «desprezar o seu povo. Ser traidor e degenerado». A única que foge desta desiludida escuridão é Mouilala, com a qual simpatizo por exteriorizar paz branca de Alá,  a «mater familiae», que nunca soube o que é desilusão por sempre conhecer a abnegação, a  provação e o sacrifício. É assim em tudo na vida…
Mas, certo é que, neste «País de desilusões e desiludidos, espreita e brilha uma cumplicidade feminina, que se cultiva, na açoteia, no meio da roupa molhada e floresce no jejum do ramadão, quando o cheiro da sopa lhes subia à cabeça até as deixar zonzas». Uma cumplicidade de olhares que esconde o «haram» (pecado) do fogo da coragem feminina, da sensualidade e paixão «pela qual somos capazes de trair este mundo e o outro». Mulheres que «têm dentro de si qualquer coisa inalcançável, um negrume que nenhum homem compreenderia». Questiono, se será este negrume a volúpia com que todas somos abençoadas.
Confesso que quando acabei de ler este livro, me apeteceu largar tudo e partir para Meknés. Não para me deslumbrar com a cidade, que segundo Pierre Loti «lembra uma tapeçaria de valor incalculável colocada sobre pedras antigas», mas para encontrar Mathilde. Para bater à porta da casa carcereira da sua solidão, para a olhar frente a frente com admiração, para a cingir nos meus braços e oferecer-lhe poesia. A poesia de Bowles, de Borges, de Sophia que como ela, amava o mar. Poesia para a apaziguar e a fazer acreditar que, pelo menos os poetas não «são indiferentes à beleza das coisas». Para lhe tocar no lábio marcado pela fúria e nele lhe desenhar um sincero sorriso. Para lhe dizer que a «vida não passa de uma empreitada de desaparecimento» para todos nós. A única memória que podemos deixar é o nosso solto riso e alegria. Não somos Deuses para nos erigirem altares e o esquecimento é o destino de todo o ser humano. Ser humano que acha que as guerras é que os transformam em heróis semelhantes a deuses e por isso lutam, lutam. Não por causas patriotas, nem independência , mas por  mesquinhez e malvadez. Que nestas guerras «eles vão-se matar uns aos outros e as borboletas continuarão a voar».
Eu também continuarei a voar como uma borboleta quando  ler a continuação desta saga no «Vejam como dançamos», e espero que esta narrativa me esfaqueie tanto como «O país dos outros», pois segundo Kafka, só os livros que magoam e esfaqueiam é que têm interesse.
__________
Leïla Slimani
O País dos Outros
Alfaguara  20,95€

COMPRAR O LIVRO