Sem nós, o mundo não existe

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

“Circe” de Madeline Miller na Minotauro do grupo Almedina com tradução da Maria de Fátima Carmo.
Este livro e a sua capa perseguiram-me sempre que entrei em livrarias no último mês. Acabou por enfeitiçar-me como Circe o fez a deuses, titãs e mortais. Mais uma vez sou suspeito, pelo meu amor à mitologia clássica, mas também porque o livro coloca à prova a minha exigência. Gostei muito e aconselho a quem, como eu, acredita nos mitos e lendas para encontrar a magia inexistente na nossa vida quotidiana. Nesta hierarquia difícil, Circe diz “os nossos poderes eram tão modestos que mal conseguiam assegurar as nossas eternidades.” Era, ou é, uma realidade tão presente como a presente em: “o meu pai nunca conseguiu imaginar o mundo sem ele”. Mas a verdade é que, sem nós, o mundo não existe, apesar de não sermos deuses. Pois “por baixo do aspecto tranquilo e familiar das coisas algo espera para rasgar o mundo em dois.” E “os ressentimentos dos deuses” são “tão imortais como a sua carne.” Eu sei que não conseguimos “imaginar o medo que os deuses têm da dor.” E, como a maiorias mortais, “os deuses detestam todo o tipo de trabalho, está na sua natureza.” Eles que dependem das rezas e por isso “os monstros são uma benção para os deuses. Imagina todas as preces que provocam.” Como as tempestades e os infortúnios. E o que já todos sentimos na pele: “Faças o que fizeres, não sejas demasiado feliz, pois isso fará abater o fogo sobre a tua cabeça.”
“Por vezes devemos contentar-nos com a ignorância.” Mas isso não está na natureza humana, embora por vezes na dos deuses. Assim a grande perfeição, impossível em nós, só nos restando assumir que “é assim que são as coisas. Consertamo-las, estragam-se, consertamos-las de novo.”
Um livro que nos ensina a sermos mortais: “se fosse mortal, teria ouvido o bater do meu coração. Mas os deuses têm veias lentas.”
Nós, felizmente, não.
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Madeline Miller
Circe
Minotauro  19,90€

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