“Se um texto não tiver ritmo, ninguém o lerá”
CRÓNICA
| agostinho sousa
Dos vários diálogos, ao longo de dois anos, Murakami, autor e reconhecido escritor, e Ozawa, reputado maestro, surge um conjunto de reflexões em torno da música, das suas interpretações, de maestros, músicos e compositores, alimentadas por dois «corações famintos», como é mencionado, pela necessidade e vontade de ambos viverem intensamente as suas profissões, respetivamente a da literatura e a da música, de forma a que cada uma dessas vidas se torne um prémio para cada um, numa abordagem enriquecedora sobre «boa música» e «acerca de boa música podemos dizer o mesmo que do amor:: nunca é demais.»
Osawa trabalhou, numa primeira fase da sua vida com grandes dificuldades económicas e linguísticas por não dominar o inglês, aprendeu e conviveu com grandes figuras da direção musical: Leonard Bernstein, Karajan ou Karl Bohm, bem como teve contacto com inúmeros grandes músicos, com destaque para Glenn Gould. Isso é mais que suficiente para o considerar um fiel depositário de histórias e vivências extraordinárias.
Por outro lado, Murakami é um grande conhecedor e apreciador de música (dita) clássica e de jazz, até porque chegou a ser proprietário de um clube de jazz em Tóquio, e é um grande colecionador de vinis, CD’s e DVD’s destas áreas musicais.
A conversa entre ambos é portanto sumarenta em termos musicais, complementada com a possibilidade de terem escutado esta ou aquela passagem de determinada obra, tocada, tantas vezes, de formas diferentes consoante a orquestra, o intérprete, o ano em questão ou o tipo de gravação.
É interessante constatar a, fundamental, importância de um maestro na condução de uma orquestra. A dificuldade em «unificar a respiração da orquestra é extremamente difícil» como refere Osawa, a que o autor contrapõe: «Quanto mais escuto as suas palavras, mais me apercebo de como deve ser difícil dirigir uma orquestra! Escrever um romance em completa solidão afigura-se-me muito mais fácil.»
Das inúmeras histórias em torno da música, mencionadas por Osawa a Murakami, destaquemos estas duas:
– «Embora soubesse as partituras de cor, o Karajan dirigia sempre de olhos fechados. A última obra que dirigiu foi “O Cavaleiro da Rosa”… Eu estava muito próximo, e ele manteve os olhos fechados do princípio ao fim. Conhece o trio final em que as três mulheres cantam juntas? Elas cantavam e olhavam fixamente para o maestro, mas ele não abriu as pálpebras uma única vez.»;
– «[…] por exemplo, Mahler exige aos músicos que superem os seus limites. Creio que Mahler compôs as suas obras pensando num futuro distante, porque na época as orquestras não possuíam a qualidade atual.»
A páginas tantas, Murakami entrecruza as duas disciplinas em diálogo e pergunta (dando a resposta): «O que conta mais na escrita? O ritmo. Se um texto não tiver ritmo, ninguém o lerá. Não sei como explicar. Faz falta uma espécie de ritmo suscetível de empurrar o leitor para a página seguinte. Ler um manual de instruções, por exemplo, é um suplício para qualquer um, não acha?» Em contrapartida este livro tem muitos e bons ritmos. «Um termo para [o] designar seria “polirritmia” como na música.» em suma, um prazer de leitura, em especial para quem gosta de «boa música». Espinho, 07/07/2022
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Haruki Murakami e Seiji Ozawa
Música, só música
Casa das Letras 21,90€