Sara Mesa: Onde a vida estagna e nada prescreve a não ser o amor e o desamor

CRÓNICA
| Célia Gomes

«Um Amor» vive-se em La Escapa, uma aldeia inóspita, onde a vida estagna e nada prescreve a não ser o amor e o desamor. Um local gasto pela erosão do tempo, das palavras, dos habitantes, agentes  que desgastam com a força da expiação, do preconceito, da rejeição, fossilizando seres e atitudes. Um local onde se ergue El Glauco, o monte que vigia, que atemoriza, que impõe- «a silhueta de El Glauco é omnipresente, está lá para onde quer que ela olhe, até mesmo quando lhe vira as costas, assediante». Nas páginas de «Um Amor», esconde-se o «Grito» de Munch que explode mudo por toda a aldeia e ecoa no cimo do El Glauco como uivo desesperado de lobo que anseia a lua. Um grito bradado por muitos, com timbres diferentes. O grito do iracundo proprietário da casa, de predador tentando atacar a presa, «enquanto fala, o senhorio olha-lhe para os seios. Fá-lo de propósito para a destabilizar, para a humilhar». O grito da velha Roberta, atacada pela demência, (ou mediunidade?), que revela, «Aqui, neste lugar ninguém entende ninguém. Não vês que ninguém nasceu aqui?». O grito desesperado de José, quase cego a sentir a sua Roberta a flutuar na dimensão da irrealidade. O grito que ecoa na casa abandonada dos «irmãos incestuosos» com timbre de vergonha, «memória e advertência». O grito de Píter, o conselheiro, quiçá cansado de ser sensato e correto. “A tendência de Píter a intrometer-se em tudo, esse tom de quem aconselha baseado na voz da experiência» (será Píter o grilo falante da história do Pinóquio?) O grito de Andreas, repleto de conformada solidão. Andreas, o estrangeiro, o assazonado, o que respeita e não finge, «posso arranjar-te o telhado em troca de me deixares entrar em ti um bocado?», o que tem o «droit de sauver». Será que tem? E salvar quem? O grito de dor da menina do «el chaletito» quando é mordida pelo cão  «Cascudo». Questiono se não será o Cascudo o «alter ego» de Nat. O «alter» arisco, desesperado, que se cansa de «falar outra língua», de ser olhado com azedume e que resolve ferrar para alertar, para se opor ao instituído? Talvez.
E Nat,  a  intrusa, a díscola, a labiríntica, a que  age sem saber bem para onde vai nem o propósito do seu ir. O grito desta, da protagonista, que ecoa poesia. Ouço ao longe o «Cântico Negro», de Régio, seguido do «Fanatismo» de Espanca, findando com o «Amei-te e por te amar», de Pessoa. Um grito fundo que conhece a busca, a dúvida, o ciúme, a obsessão, o caminho. Será este grito o da própria Sara Mesa? Sara Mesa que com a sua escrita intimista, nos faz imergir nos recantos mais profundos de Nat. E é nessa penumbra que assistimos à transmutação «é um rapto, uma metamorfose, uma transformação radical do esperado». É aí que abraçamos o amor irresistível «Andreas inoculou nela o seu veneno, foi isso que aconteceu (…). Ela não escolheu Andreas, não o buscou: ele impôs-se. E porquê resistir?» (todo o amor se impõe e se interroga). Mas também é nesses recantos que somos cúmplices do prazer («de mãos dadas, ainda aturdidos, refazendo-se do prazer, ela sente que um ciclone a arrastou e transportou para outro mundo» – bendito mundo que se intercala com a insatisfação «a atenção que lhe presta quando ela lhe conta alguma coisa, a inflexão da sua voz. Tudo lhe parece sempre insuficiente.» Quem nunca sentiu essa sensação? Por fim, a emersão. Emergimos no cimo do vigilante «El Glauco», onde observámos Nat a sentir a natureza a falar com ela através do silêncio e das silenciosas formigas. É, então, o momento da revelação, em que ela se abraça, se encontra, «compreende que não se alcança o alvo apontando, mas descuidadamente, através de oscilações e rodeios, quase por acaso». Nat encontra a paz, aquela paz cantada por Gilberto Gil e que todos almejamos alcançar nem que seja por um momento que valha uma eternidade.
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Sara Mesa
Um Amor 
Relógio d´Água  17,50€

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