Sara Mesa: Enfim, um grande livro
CRÓNICA
| agostinho sousa
Na sequência da leitura de Um Amor, livro anterior da autora (nascida em 1976), e de que saiu recentemente em Espanha uma adaptação em filme, fiquei preso e atento ao seu livro seguinte. Daí, não esperei pela edição portuguesa e li-o no original castelhano, num par de dias.
Trata-se da história de uma família, com quatro filhos, idêntica a muitas outras da Espanha franquista, sob regras muito rigorosas e apertadas, onde o pai é figura soberana, tutelado pela austeridade que impõe nos comportamentos dos demais, numa sociedade que o apoia cegamente. Todos, incluindo a mãe e os filhos, têm à partida os seus papéis bem definidos que seguirão, porventura, futuros pré-estabelecidos.
Só que o ser humano não está condicionado a ser um autómato e a sociedade também não é estanque, pelo que essas previsões sofrerão transformações significativas e tão imprevisíveis que serão ingredientes para enriquecer o enredo e as relações, aparentemente estabilizadas, desta família.
É também um retrato da sociedade franquista, do seu autoritarismo apoiado no respeito absoluto dos dogmas estabelecidos pelo clero cristão, tantas vezes baseados em valores que pretendem cercear até os mais pequenos prazeres mundanos e que, na penumbra, os seus mentores acabam por cometer os maiores pecados do seu próprio credo.
Transcrevo, de uma leitura recente, um extrato do livro Castélio contra Calvino de Stefan Zweig quando este escreve: «Como é, por isso, banal e vão qualquer esforço em pretender reduzir a divina multiplicidade da existência a um denominador comum, dividir a humanidade, em preto e branco, em bons e maus, em tementes a Deus e hereges, obedientes ao Estado e seus inimigos, com base num princípio implantado meramente com a lei do mais forte!»
No enredo desses falsos princípios, desvendar-se-á a figura de um pai autoritário que afinal não é aquilo que se julga ser e dos seus quatro filhos que seguirão caminhos tão antagónicos aos (falsos) princípios estabelecidos.
Sobre esse estereótipo de figura (paternal) impoluta recordo o que disse um juiz no preâmbulo do livro A República dos Corvos de José Cardoso Pires: «[…] cada homem transporta dentro de si o seu bestiário privado».
Enfim, um grande livro, de escrita fluída e cativante, certeira por económica e que segura o leitor até ao fim, de onde sobressai que «as aparências por vezes iludem», como diz o adágio popular, principalmente nos dias que correm onde a realidade parece ser cada vez mais virtual e os mais distraídos ou mais frágeis são levados pela corrente da maioria olvidando-se, tantas vezes, que há rumos alternativos e pessoais ao seu alcance. Ou como escreve Sándor Márai em A Gaivota: «Eu também existo, não apenas o mundo».
Espinho, 17/12/2023
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Sara Mesa
A Família
Relógio d’Água 18€