Sara Helm: o arrepio da indiferença
CRÓNICA
|agostinho sousa
O livro relata a história, através de uma pesquisa exaustiva e detalhada da sua autora e jornalista, do único campo de concentração nazi exclusivo para mulheres. O título é uma analogia ao conhecido livro de Primo Levi: «Se isto é um homem».
Trata-se de uma leitura densa de informação, relativa a imensas e profundas vivências, com pormenores de um crescendo de experiências atrozes, largamente documentadas e conhecidas de outras abordagens sobre campos de extermínio, mas com a particularidade das vítimas terem sido mulheres de várias origens e condições: judias, ciganas, alemãs (prostitutas, comunistas ou que tivessem cometido qualquer crime, por mais insignificante que fosse), de outras nacionalidades (sem qualquer razão aparente), etc.
A autora socorre-se também de muitos testemunhos de sobreviventes desse e de outros campos de concentração para enquadrar a narrativa de um local com características especiais, não só pelo tipo de destinatárias como pela: proximidade geográfica do campo a Berlim; multiplicidade de nacionalidades envolvidas; diversas estratégias adotadas conforme o evoluir da guerra na sua organização e no destino das prisioneiras; resistência de algumas destas mulheres numa luta de sobrevivência permanente; e o secretismo a que esteve remetido, mesmo após a sua libertação pelas tropas russas, sem alcançar a divulgação de outros campos de concentração nazis.
Chega-se ao fim de quase 700 páginas a refletir sobre a abrangência do comportamento humano: desde o vil ato de vexar as prisioneiras até à coragem de algumas destas na recusa de colaborarem com esse desprezível status quo.
O leque de situações descritas é muito abrangente e diverso, mas o que mais me arrepiou foi a indiferença, sem remorso visível, com que algumas das guardas desse local de extermínio se comportaram no julgamento, após o término da guerra, desculpando as responsabilidades para o cumprimento de ordens. A expressão «a banalidade do mal» de Hannah Arendt, de 1961, foi escrita por outras palavras, anos antes, por «um escritor chamado Jerrard Tickell, sentado no banco da imprensa em Hamburgo, [que] identificou o mesmo fenómeno ali. As guardas no banco dos réus «poderiam ter saído de uma fila para o pão em qualquer cidade alemã», escreveu ele. Nesse julgamento há uma guarda que tinha previamente feito uma permanente no cabeleireiro, outra «usava uma pele de raposa fulva», outra «vestia um casaco de peles, adquirido – ao que constava – com o produto da venda de dentes de ouro». Foram testemunhar como se fossem a um acontecimento social.
«[…] Mas era precisamente a normalidade dos réus de Hamburgo que tornava aquele drama tão chocante. Em Nuremberga, o tribunal ouviu as motivações dos «grandes conspiradores», mas em Hamburgo ficaram a conhecer umas moças de província […] que foram trabalhar para Ravensbrück e depois fizeram o que lhes mandavam.
Quando perguntaram a Grete Bosel porque é que ela tinha cometido os seus crimes, ela respondeu: «Eu comportei-me decentemente, mas ao fim de duas semanas mudei e aceitei os métodos que eram geralmente usados». Quando perguntaram a Dorothea Binz porque é que ela não contara a ninguém as atrocidades que tinha assistido, ela respondeu: «Não valia a pena, por que toda a gente sabia».
Para elas o mundo de Ravensbrück acabaria por tornar-se normal.
Termino com o relato de Wanda, uma sobrevivente polaca que, enquanto estava a tirar rosas para o lago de Ravensbrück, disse à autora «que um dos médicos da SS, Fritz Fischer, a contactara recentemente a pedir-lhe perdão. «Eu disse-lhe que não havia nada que eu pudesse perdoar-lhe. Ele teria de pedir perdão a Deus.»
Espinho, 13/03/2022
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Sara Helm
Se isto é uma mulher
Editorial Presença 29,90€