Santiago Camacho: “A destruição da classe média é um facto”


O desemprego, a exclusão social e as desigualdades não param de
aumentar, os empregos que restam são cada vez mais mal pagos, a vida tal como a
conhecíamos já não existe. O capitalismo está a matar a classe média. Numa
linguagem directa e ousada, o jornalista espanhol Santiago Camacho expõe a
realidade distorcida por perspetivas ideológicas que ditam a austeridade para
as populações e os resgates para os bancos, causadores da crise que há cinco anos
destrói Portugal e outros países intervencionados. O autor de “A Troika e os 40
Ladrões” regressa agora com um livro ainda mais contundente: “Como o
Capitalismo Acabou com a Classe Média”.

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P – Depois de “A Troika e os 40 Ladrões regressa ao tema da crise económica e financeira. Qual o objectivo?
R – Apesar do título, acho que no livro anterior falei demasiado da
troika e muito pouco dos 40 ladrões. Creio que agora é o momento, quando a
destruição da classe média tal como a conhecemos é um facto.



P – Pretende dotar as pessoas de informação para perceberem o que lhes
está a acontecer?

R – Desgraçadamente não é preciso dizer-lhes o que se está a passar nem
o que vai acontecer, pois sofrem-no na pele e vêem que o panorama que se abre
ante os seus olhos é muito diferente da vida relativamente cómoda que deixámos
para atrás há apenas uns anos. Não, a minha intenção é esmiuçar por que é que
isto está a acontecer, quem são os culpados e quem são os beneficiados.



P – A classe média, face ao papel que desempenha nos países democráticos
(de que fala no livro), não estará suficientemente informada para perceber o
que se passa, ao fim de cinco anos de crise?

R – Essa é só uma parte do problema… O mais grave é que nem os
governantes parecem estar suficientemente informados, antes dão mais a
impressão de contemplarem uma realidade distorcida pelas suas perspetivas
ideológicas.



P – No seu livro detalha com precisão a situação de Portugal. Além de
tudo o que tem sido escrito sobre o assunto, fez investigação no terreno?

R – Digo sempre aos meus amigos que se algum dia me perder para me
procurarem em Lisboa. Conheço Portugal, visito-o com frequência e, sobretudo,
falo (num ‘portunhol’ péssimo, reconheço) com toda a gente que posso. Graças a
isso pude ver como o país ia mergulhando numa desesperança que não era senão o
prólogo do que mais tarde sucederia no meu próprio país.



P – O que distingue a situação das classes médias de Portugal e Espanha,
ambas debatendo-se com elevados índices de desemprego, baixa de rendimentos e
dívidas, sobretudo devido ao crédito à habitação?

R – As classes médias espanholas ainda não saíram do estado de
estupefação. Considerávamo-nos ricos, a quarta economia da zona euro, vivíamos
um sonho e muitos ainda resistem a admitir que terminou. O português é mais
apegado à realidade, também um pouco mais fatalista, e, em certo sentido,
melhor dotado para lidar positivamente com uma situação deste tipo.

Em Espanha existe o problema acrescido de o endividamento hipotecário
ter sido adquirido a preços completamente irreais, inflacionados até ao limite,
sem comparação com o resto da Europa, pelo que os espanhóis agora estão a pagar
– os que podem – dívidas por propriedades que, em muitos casos, já só valem
metade ou uma quarta parte do seu valor de aquisição.



P – A que acha que se deve uma certa passividade das populações dos
países intervencionados, se exceptuarmos a grega?

R – Deve-se ao facto de, no fundo, termos mentalidade de vítimas… Uma
mentalidade que nos foi inculcada através dos meios de comunicação.
Considera-se que isto é uma espécie de desastre natural face ao qual nada
podemos fazer ou, quanto muito, delegar nos políticos. Mas não é assim, cada
pequena acção tem um efeito, pequeno ou grande, mas tem. Quando nos dermos conta
de que a acção é essencial e ninguém vai fazer por nós ou que nós próprios não
fizermos, a coisa mudará.



P – A situação de crise e, sobretudo, de desemprego, terá instalado
nesses países um clima de medo que leva as populações a não reagirem?

R – Supostamente, mas é parte de um processo e depois do medo vem sempre
a ira… No México, onde existe um verdadeiro terror à actual delinquência,
deu-se um fenómeno novo: os linchamentos eram um fenómeno isolado – um por ano,
não mais. Actualmente há um por semana. Demasiado medo, demasiado tempo, pode
ter consequências imprevisíveis.



P – Esse medo instalado poderá explicar, de alguma forma, que os
partidos conservadores vençam as eleições nesses países? As pessoas terão
receio da mudança?

R – O eleitorado conservador geralmente tende a ser muito mais fiel, mas
em Espanha, por exemplo, dá-se um processo fascinante. É muito provável que os
conservadores voltem a ganhar, com uma importante diminuição. Mas os
socialistas também estão a perder apoio a passos largos. No entanto, nos
bastidores começam a esboçar-se novas alternativas, que não estão ainda maduras
mas que estarão à medida que consigam a confiança das pessoas.



P – Os bancos recebem ajuda estatal, as dívidas fiscais são perdoadas
aos mais ricos. O que poderá explicar a aceitação pacífica da situação por
populações que vivenciam enormes privações? 

R – Creio que essa aceitação não é absoluta resignação. Apesar de tudo,
mantemos a esperança de que a situação vai mudar. Mas em algum momento teremos
de descobrir que as coisas não mudam se não fizermos algo para que mudem.



P – Apesar de um mal-estar generalizado e de protestos organizados, não
se assiste a uma verdadeira revolta das populações contra as instituições
internacionais (CE, BCE, FMI) e os governos que insistem numa política cujos
resultados têm sido contrários aos anunciados: o desemprego dispara, a dívida
pública cresce, a economia afunda. Com base na sua pesquisa, o que explica
isso?

R – Ideologia, puro e simples fanatismo económico. O mais curioso é que,
mesmo quando o FMI reconhece que as suas actuais políticas não funcionam,
alguns ainda se empenham em defendê-las e aplicá-las.



P – Como refere, a classe média é cada vez mais uma miragem. Face a uma
juventude cada vez mais escolarizada e esclarecida e sem emprego ou perspectivas
de futuro, os governos vão conseguir evitar a conflitualidade social ou a
despolitização e individualismo dos mais novos evitará uma explosão social?

R – Creio que se passará pelas duas fases… As sociedades evoluem muito lentamente
e numa base de teste/erro. A explosão social chegará, de facto está a chegar,
da convicção de que só a sociedade civil pode colocar os meios para uma
repartição mais equitativa da riqueza.



P – A Alemanha é realmente quem manda na Europa?
R – Sim, excepto nas áreas onde encontra um bloco forte que se opõe aos
seus interesses e sempre que esse bloco é liderado pela França. Não é só uma
questão de poder económico… Os criadores do projeto europeu estavam convencidos
de que a Alemanha era essencial para uma Europa unida e fizeram os possíveis
para que o país se sentisse confortável no âmbito da União.



P – As eleições poderão alterar alguma coisa na política alemã relativa
à Europa?

R – Creio que não. É como quando nos Estados Unidos muda um governo: são
mudanças de consumo interno, a política externa é quase igual haja um
republicano ou um democrata na Casa Branca.



P – A Comissão Europeia diz que está preocupada com o desemprego, mas as
suas directrizes na troika vão no sentido de aumentar o desemprego, como no
caso das reestruturações dos bancos, que exigem sempre redução de efectivos.
Esta contradição resulta da situação dos países intervencionados ou é a prova
de que os interesses económicos e dos grandes grupos têm prioridade face às
populações?

R – Se as políticas que favorecem os bancos e as grandes empresas
servissem para criar emprego, por esta altura teríamos de estar a receber
imigrantes de todo o mundo para preencher as vagas. Mas não é isso que
acontece, a única coisa que serve realmente para gerar emprego é o estímulo à
procura, algo que Lula, no Brasil, entendeu perfeitamente.



P – O crescente poder económico e político da China é realmente um
perigo para a Europa?

R – É, mas não pelo que imaginamos. A capacidade industrial e de consumo
da China é impressionante e será um dos fatores determinantes no final do
século. Mas muitos acreditam que a China está à porta da sua própria crise
económica e as consequências para os mercados financeiros internacionais serão
de grande magnitude e completamente imprevisíveis.



P – Mas a nível global o desenvolvimento dos chamados países emergentes
tem contribuído para o crescimento mundial e para a melhoria de vida de milhões
de pessoas…

R – E assim deve ser… mas não à custa da “terceiromundização” da Europa.
Em geral é um processo positivo que abre novos mercados, o problema é que os
benefícios acabam em muito poucas mãos e as consequências negativas afectam-nos
a todos.



P – A sua carreira jornalística tem-se centrado em temas como sociedades
secretas ou teorias da conspiração. O que o levou a virar-se para a crise
económica e financeira? Há alguma relação?

R – Há muita… é preciso não esquecer o que disse o célebre “garganta
funda” durante a investigação do caso Watergate: “sigam o dinheiro”. Quando
falamos de operações clandestinas de serviços secretos, crime organizado,
seitas destrutivas, organizações terroristas ou sociedades secretas, no final o
que permite entender toda a trama é compreender as suas finanças. Compreendi-o
há anos, quando escrevi um livro sobre a história secreta do Vaticano que, no
fundo, acabou por converter-se numa histórica económica do Vaticano.



P – Qual o alvo da sua actual investigação?
R – Depois do que aconteceu com Edward Snowden, Wikileaks e muitos
outros assuntos, acho que chegou o momento de escrever uma segunda parte de um
livro que foi um grande êxito: “20 Grandes Conspirações da História”. Vivemos
dias estranhos, em que o que há uns anos eram teorias de conspiração para
paranoicos são agora primeira página dos jornais.

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Santiago Camacho
Como o Capitalismo Acabou
com a Classe Média
A Esfera dos Livros, 18€