Sándor Márai: Um livro de enigmas

CRÓNICA
| agostinho sousa

Um alto funcionário húngaro, de meia-idade, em plena 2.ª Guerra Mundial, dita uma ordem importante para que o Regime do seu país passe a aceitar o crescente poderio nazi. Na sua solidão, cheio de reflexões e dúvidas existenciais, cruza-se com uma jovem finlandesa que é, para ele, a reencarnação de uma antiga paixão que se tinha suicidado.
O diálogo entre ambos, num início de noite na casa dele e após se terem beijado, revela que ela teve conhecimento privilegiado de pormenores da Guerra muito antes que a maioria das pessoas. Mas também serve para ele regressar à sua anterior e desaparecida amada, ao revelar à sua recém companheira: «Quando, há pouco, te beijei, tens de saber que não te beijei a ti, a mulher que, através dos labirintos do mundo, voltou para mim, mas também a uma outra mulher, de que tu fazes parte, e essa mulher, mesmo morta e desaparecida, é um dos elementos daquilo a que tu chamas «eu»».
Esse diálogo, rico e cheio de pontas soltas, obriga o leitor a procurar hipotéticas certezas ou razões que essas personagens vão apresentando e representando, no passado e no presente, com mais perguntas que afirmações.
Trata-se de um livro de enigmas, a começar pelo título, porque aquele tempo de guerra era, entre a destruição física e moral de bens e pessoas, mais de dúvidas que de certezas. Presume-se que essa jovem foi espia e estará, quem sabe, nesse papel numa Hungria sob o jugo nazi, em posse de segredos, quiçá enigmas, que a tornam muito poderosa num conflito bélico.
Contar algo mais seria desvendar algumas, das poucas e explícitas, descobertas aí descritas. No fim apenas fiquei com uma: estar perante um livro que nos deixa a refletir depois da sua leitura. São mais as portas abertas que fechadas, certamente pela vivência que o autor teve naquele tempo de caos, onde «quem guarda um segredo, tem força».
Como diria Enrique Vila-Matas, em “O Mal de Montano”: «Gosto de romances que não têm final. O leitor que procura romances acabados – dizia Unamuno – não merece ser meu leitor, pois ele próprio já está acabado antes de me ter lido. E, enfim, recordo-me que Walter Benjamin dizia que toda a obra acabada é a máscara mortuária da sua intuição.»
Foi um gosto lê-lo e supor cenários alternativos.
Espinho, 24/06/2024
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Sándor Márai
A Gaivota
D. Quixote  14,90€

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