Salazar amigo, o cardeal está contigo
O levantamento dos véus que (en)cobriram os longos anos do salazarismo-caetanismo tem cativado os historiadores, e não só, desde que o 25 de Abril permitiu o trabalho de uma nova onda de especialistas. E, nesse corrupio, têm sido personagens, quadros sociais e instituições do Estado Novo a mobilizar a atenção e interesse de Irene Flunser Pimentel, numa actividade multiplamente distinguida.
No caso do antigo cardeal patriarca de Lisboa, antepunha-se a ideia comum de que o amigo, correligionário e colega de quarto de Salazar nos tempos de Coimbra não tinha sido mais do que um comparsa na repressão. A historiadora procurou desviar o reinante manto diáfano da fantasia para procurar nas fontes disponíveis a nudez forte da verdade, se é permitido trazer Pessoa à colação.
Não foi pelo tom dominante na opinião geral, obviamente. O objecto da sua investigação segue os preceitos da ciência histórica, e cautelosamente previne que se trata de “tentativa de elaboração de uma biografia”, para “relatar a vida e a obra pública de alguém que dirigiu a Igreja portuguesa, importantíssima instituição religiosa, cuja matriz católica enformou a ideologia da ditadura salazarista”.
A obra não assenta na pretensão de focar episódios privados e desconhecidos, mas sim, como defende a autora, beneficia a “interpretação pessoal de episódios já conhecidos”, método normal na historiografia, o que leva, por exemplo a ressaltar a luta do cardeal “na independência do ‘seu’ clero e da ‘sua’ Igreja”, ou a defesa da sua separação do Estado. De qualquer modo, subjaz na obra, como era de esperar, a ideia de afastar ideias feitas ou a “imagem caricatural do cardeal-patriarca de Lisboa”.
Estas opções poderão levar o leitor a, por vezes, entender que há uma certa benevolência na análise, eventual excesso no reconhecimento dos méritos de Cerejeira. Mas a autora não recusa, desde logo, que considera a empatia “um processo necessário para realizar um estudo historiográfico sobre uma pessoa”. Riscos, claro.
O resultado da leitura destas mais de 350 páginas entre texto e notas coloca, no entanto, as coisas no seu lugar. A biografia política, sem propiciar descobertas, acaba por ser uma síntese importante das relações entre Cerejeira e Salazar, particularmente estes, num quadro de gente importante na vida académica e política do país a partir dos primeiros anos do século XX.
Talvez algumas questões requeressem mais atenção, aprofundamento, como a questão de Fátima, com os seus milagres tão apropriados no quadro político da contestação à República, com a Igreja a fervilhar de indignação pelo tratamento que lhe foi dado no pós 5 de Outubro. É certo que Cerejeira ainda não estava no topo da hierarquia da Igreja, mas nem por isso deixa de ser relevado o seu trabalho de análise, como historiador, mas não só. Ele nunca deixou de participar e dirigir a intervenção pública, nomeadamente em publicações do grupo católico coimbrão que integrava.
O aparente distanciamento político do cardeal é quebrado por inúmeros assomos de intervenção, sendo que a sua actividade antes da chamada a Lisboa, para exercer o longo cardinalato, caracterizou-se por uma intensa e dedicada actividade antirepublicana, no seguimento de uma estratégia de ralliement no interior da Igreja, recomendado pelo Papa da época.
A propósito de Fátima, a mostrar que a luta pelo distanciamento da Igreja quanto à política não era para levar muito longe, lá aconteceu em 1931 que o cardeal, enquadrado pelo episcopado português, ali participou numa manifestação de apoio à Ditadura durante as cerimónias do 13 de Maio.
A autora recorda mesmo que Cerejeira evocou acontecimentos revolucionários dessa época em Portugal, para “pedir à Virgem Maria, na missa dedicada aos doentes, que salvasse a fé católica, Portugal e o mundo, em particular Espanha, onde, segundo ele, as igrejas estavam a ser queimadas e o clero a ser perseguido”. Unidos, ele e o presidente do Conselho, como sempre, no fundamental, em quase tudo, à parte as quezílias sobre os limites da quinta de cada um. Amigos são para as ocasiões, e esta era importante. As pequenas questões não interferem no fundamental – e isto era política, o que desde sempre os motivara na coisa pública.
Trata-se, em suma, de uma biografia política, até porque a abordagem no que se refere à vida da Igreja requer uma investigação mais particular, mesmo pela ocorrência de situações conflituais no interior da própria instituição, como são exemplos o caso do bispo do Porto, António Ferreira Gomes, o caso do padre Felicidade Alves, ou mesmo os acontecimentos da Igreja do Rato. Além de outras questões, eminentemente “civis”, mas que certamente não escaparam à análise no interior da Igreja, como o Tarrafal ou o assassínio de Delgado. Além das torturas na Pide, as deportações, etc.
E há o papel do antigo patriarca, frequentemente referido como potencial candidato à cadeira do Vaticano, tudo questões a requererem investigação nos arquivos do Patriarcado de Lisboa e nos do próprio Vaticano, além das memórias que eventualmente escreveu. Em devido tempo, quanto às suas hipóteses de ser eleito para o sumo pontificado, e por lhe ser reconhecido o gosto pelas deslocações em avião, afirmou – na chegada a Roma para participar na eleição de um novo papa (acabou por ser a vez de Pio XII) – que no caso de ser o escolhido, o Vaticano passaria a ter um avião ao seu serviço.
De resto, assinale-se que foi ele o primeiro cardeal a chegar a Roma por via aérea. Aí está uma nota dissonante na relação de amizade que o unia a Salazar. Nem de carro arriscava.
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Irene Flunser Pimentel
Cardeal Cerejeira – O príncipe da Igreja
A Esfera dos Livros, 28€
No caso do antigo cardeal patriarca de Lisboa, antepunha-se a ideia comum de que o amigo, correligionário e colega de quarto de Salazar nos tempos de Coimbra não tinha sido mais do que um comparsa na repressão. A historiadora procurou desviar o reinante manto diáfano da fantasia para procurar nas fontes disponíveis a nudez forte da verdade, se é permitido trazer Pessoa à colação.
Não foi pelo tom dominante na opinião geral, obviamente. O objecto da sua investigação segue os preceitos da ciência histórica, e cautelosamente previne que se trata de “tentativa de elaboração de uma biografia”, para “relatar a vida e a obra pública de alguém que dirigiu a Igreja portuguesa, importantíssima instituição religiosa, cuja matriz católica enformou a ideologia da ditadura salazarista”.
A obra não assenta na pretensão de focar episódios privados e desconhecidos, mas sim, como defende a autora, beneficia a “interpretação pessoal de episódios já conhecidos”, método normal na historiografia, o que leva, por exemplo a ressaltar a luta do cardeal “na independência do ‘seu’ clero e da ‘sua’ Igreja”, ou a defesa da sua separação do Estado. De qualquer modo, subjaz na obra, como era de esperar, a ideia de afastar ideias feitas ou a “imagem caricatural do cardeal-patriarca de Lisboa”.
Estas opções poderão levar o leitor a, por vezes, entender que há uma certa benevolência na análise, eventual excesso no reconhecimento dos méritos de Cerejeira. Mas a autora não recusa, desde logo, que considera a empatia “um processo necessário para realizar um estudo historiográfico sobre uma pessoa”. Riscos, claro.
O resultado da leitura destas mais de 350 páginas entre texto e notas coloca, no entanto, as coisas no seu lugar. A biografia política, sem propiciar descobertas, acaba por ser uma síntese importante das relações entre Cerejeira e Salazar, particularmente estes, num quadro de gente importante na vida académica e política do país a partir dos primeiros anos do século XX.
Talvez algumas questões requeressem mais atenção, aprofundamento, como a questão de Fátima, com os seus milagres tão apropriados no quadro político da contestação à República, com a Igreja a fervilhar de indignação pelo tratamento que lhe foi dado no pós 5 de Outubro. É certo que Cerejeira ainda não estava no topo da hierarquia da Igreja, mas nem por isso deixa de ser relevado o seu trabalho de análise, como historiador, mas não só. Ele nunca deixou de participar e dirigir a intervenção pública, nomeadamente em publicações do grupo católico coimbrão que integrava.
O aparente distanciamento político do cardeal é quebrado por inúmeros assomos de intervenção, sendo que a sua actividade antes da chamada a Lisboa, para exercer o longo cardinalato, caracterizou-se por uma intensa e dedicada actividade antirepublicana, no seguimento de uma estratégia de ralliement no interior da Igreja, recomendado pelo Papa da época.
A propósito de Fátima, a mostrar que a luta pelo distanciamento da Igreja quanto à política não era para levar muito longe, lá aconteceu em 1931 que o cardeal, enquadrado pelo episcopado português, ali participou numa manifestação de apoio à Ditadura durante as cerimónias do 13 de Maio.
A autora recorda mesmo que Cerejeira evocou acontecimentos revolucionários dessa época em Portugal, para “pedir à Virgem Maria, na missa dedicada aos doentes, que salvasse a fé católica, Portugal e o mundo, em particular Espanha, onde, segundo ele, as igrejas estavam a ser queimadas e o clero a ser perseguido”. Unidos, ele e o presidente do Conselho, como sempre, no fundamental, em quase tudo, à parte as quezílias sobre os limites da quinta de cada um. Amigos são para as ocasiões, e esta era importante. As pequenas questões não interferem no fundamental – e isto era política, o que desde sempre os motivara na coisa pública.
Trata-se, em suma, de uma biografia política, até porque a abordagem no que se refere à vida da Igreja requer uma investigação mais particular, mesmo pela ocorrência de situações conflituais no interior da própria instituição, como são exemplos o caso do bispo do Porto, António Ferreira Gomes, o caso do padre Felicidade Alves, ou mesmo os acontecimentos da Igreja do Rato. Além de outras questões, eminentemente “civis”, mas que certamente não escaparam à análise no interior da Igreja, como o Tarrafal ou o assassínio de Delgado. Além das torturas na Pide, as deportações, etc.
E há o papel do antigo patriarca, frequentemente referido como potencial candidato à cadeira do Vaticano, tudo questões a requererem investigação nos arquivos do Patriarcado de Lisboa e nos do próprio Vaticano, além das memórias que eventualmente escreveu. Em devido tempo, quanto às suas hipóteses de ser eleito para o sumo pontificado, e por lhe ser reconhecido o gosto pelas deslocações em avião, afirmou – na chegada a Roma para participar na eleição de um novo papa (acabou por ser a vez de Pio XII) – que no caso de ser o escolhido, o Vaticano passaria a ter um avião ao seu serviço.
De resto, assinale-se que foi ele o primeiro cardeal a chegar a Roma por via aérea. Aí está uma nota dissonante na relação de amizade que o unia a Salazar. Nem de carro arriscava.
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Irene Flunser Pimentel
Cardeal Cerejeira – O príncipe da Igreja
A Esfera dos Livros, 28€