Rosa Alice Branco: “Uma interrogação que traz consigo uma linguagem”
[Foto: Leonor Soares]
1-O que representa no contexto da sua obra o livro “Amor Cão e outras palavras que não adestram”?
R-Todos os meus livros são muito diferentes, porque cada um corresponde a uma interrogação que traz consigo uma linguagem, embora o estilo seja uma invariante — no meu caso inclui o ritmo — que subjaz às diferenças de ordem lexical, sintagmática e semântica. No entanto, as interrogações são passíveis de várias formas e amplitudes. Desde A Alma e os Espíritos Animais (2001), aquele “tu” real, o que passa por mim na rua, toma o meu olhar, ocupa a minha escrita. Esse “tu” pode ser humano, animal, uma árvore. É tudo o que é frágil, maltratado, pelo humano ou por esse deus que permite o sofrimento e em que não me revejo. Ou é todo o ser que ama sem reservas, todo o corpo que deseja no amor. Desde modo, ocorrem naturalmente as questões sobre o humano enquanto doença mortal do animal e sobre deus como doença torturante e mortal do humano, como no meu livro Gado do Senhor, de 2011. E o humor negro, que se encontra em muitos dos poemas que percorrem a minha escrita, são-me tanto como um órgão, como a minha mão. Mas na escrita agem como condição de possibilidade de verbalizar um sofrimento que me dói sofrer. No livro que acaba de sair, Amor Cão e Outras Palavras que não Adestram, as questões e as perplexidades incidem sobre as relações de poder, sobre os grandes e pequenos predadores e as suas presas e, claro, sobre a domesticação. Refiro-me ao reino animal em concomitância com o nosso reino. A questão sobre a domesticação do cão estende-se a nós e às palavras que nos dizem.
2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-As ideias centrais são as que acabei de enumerar, mas que posso concretizar melhor. Neste livro, enceto um diálogo com a obra do etologista Konrad Lorenz, diálogo reunido em torno do cão, das suas origens e da sua “evolução” até ao cão doméstico, esse ser extraordinário, que nos deveria fazer compreender alguma coisa acerca a lealdade, da bondade, do amor. O diálogo tenta esgueirar-se por entre as barreiras que erigimos para nos protegermos dos fantasmas que regem os nossos comportamentos, da incapacidade de amar mais longe do que o ego que nos amarra o coração. Este livro nasce da necessidade constante de repensar a liberdade e o sentido da vida, quando a aprisionamos ao restringir a liberdade do outro. Mas como esquecer que na vida tudo conspira, tudo se relaciona, e nada fica fora desta intimidade?
3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Neste momento estou a rever o meu livro de divulgação sobre a Cor, que sairá ainda este ano pela Editora Contraponto. Além dos vários textos, poemas e artigos para livros e revistas, em Portugal e no estrangeiro, estou particularmente apaixonada pelo tema do texto que estou a escrever sobre a habitabilidade futura, a partir das lições que aprendemos com o confinamento. Ainda que não publique livros todos os anos, nunca deixo de escrever poemas, tenho sempre um livro em projecto. Neste momento, estou também a escrever um livro em prosa, a tactear-lhe a linguagem, a tentar perceber como funciona a escrita neste registo, a ensaiar o ritmo proposto pelas linhas que fluem ao longo da página.
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Rosa Alice Branco
Amor Cão e Outras Palavras que não Adestram
Assírio e Alvim 14,40€