Rómina Laranjeira: A força transformadora do saber

Uma leitura de Susana Nogueira

A autora refere, logo na introdução do livro, que o interesse por este tema surgiu de uma notícia no jornal sobre “os adultos iletrados dos centros novas oportunidades”. Talvez nessa altura não imaginasse a obra profícua, coesa e profusamente fundamentada com base em dados produzidos, através de entrevistas, recolha de documentos e observação, que daí resultou.
Esta obra resulta de uma tese de doutoramento, em contexto europeu, e tem como objetivo “contribuir para uma abordagem compreensiva dos sujeitos em aprendizagem e requalificação ao longo das suas vidas”.
Começamos por perceber o significado histórico da Iniciativa Novas Oportunidades (INO) no quadro da educação de adultos em Portugal e é aqui que nos deparamos com a interessante hipótese proposta pela autora de que o envolvimento em processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) pode constituir um momento-chave na alteração das identidades letradas dos formandos.
Passa-se depois para a inclusão dos formadores, como elementos centrais das ações pedagógicas, e para a apresentação do campo teórico que orienta o estudo. Foi construído um dispositivo de recolha de dados e efetivada a investigação de cariz etnográfico e longitudinal.
Foram depois considerados os percursos de vida e seus segmentos, pois podem significar aspetos importantes na transformação da identidade letrada. Além disso, foram analisadas as práticas e conceções de literacia no processo de RVCC.
Todos estes dados procuraram compreender, descrever, analisar e interpretar sujeitos nos seus contextos de atuação sociocultural, em geral, e no âmbito da Iniciativa Novas Oportunidades, em particular.
A consequente análise de dados evidenciou que “há alterações e (re)configurações nas identidades letradas, quer de formadores, quer de formandos, ao participarem de um processo de RVCC”, pois resulta em fortes mudanças em algumas dimensões dos sujeitos estudados, principalmente na autoestima e identidade letrada, tão depreciada socialmente. De tal modo que “o processo de (re)escrita da história de vida e o portefólio de competências revestem as suas trajetórias de novos significados”.
A autora, Rómina de Mello Laranjeira é detentora de um vasto e valoroso currículo académico tendo efetuado a sua formação de base em Estudos Portugueses na Universidade do Porto, na Universidade de Coimbra e no King´s College-Londres. É professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto, no Brasil e desenvolve investigação no campo dos novos estudos de literacia, etnografia da linguagem, identidades e escrita académica.
Este é um trabalho relevante, que evidencia a importância da literacia como prática social. Apesar da sua formatação, tipicamente académica, e da densidade concetual da escrita, esta obra torna o leitor cúmplice de toda a investigação, levando-o a conhecer as técnicas e práticas junto dos entrevistados e evoluindo com eles, resultando numa viagem de leitura que vale a pena desbravar.

3 Perguntas a…
Rómina de Mello Laranjeira

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Literacias na Educação de Adultos. Discursos e Identidades»?
R-  A ideia surgiu num momento em que nos média, em Portugal, se popularizaram as expressões “adulto iletrado” e “analfabeto funcional”. Foi-se construindo a ideia de que os “adultos”, apesar de alfabetizados, não sabiam ler e escrever “textos simples”, as bulas de medicamentos, por exemplo. A investigação foi desenvolvida, por isso, com o intuito de conhecer esses contextos emergentes de educação e formação em língua portuguesa, no âmbito da Iniciativa Novas Oportunidades, criada oficialmente em 2005. O foco mediático foi bastante significativo naquele momento e a explosão de Centros Novas Oportunidades também. Esse contexto despertou a minha curiosidade. A originalidade da tese deve-se ao foco nas práticas de formandos e de formadores e, ainda, à metodologia etnográfica, seguindo a perspectiva sociocultural dos estudos de literacia, no âmbito do ensino do português. O objetivo principal foi compreender se as identidades dos sujeitos se reconfiguravam em função de novos contextos e de novas práticas considerando que, durante o percurso de qualificação nos CNOs, recuperavam memórias escolares e histórias de vida.

2-A sua pesquisa a que principais conclusões chegou?
R-  O estudo, longitudinal e de cariz etnográfico, contou com a participação de 20 pessoas. A pesquisa concluiu que as identidades dos formadores alteravam-se sobretudo na sua dimensão profissional, não tanto nas concepções sobre o que significa “ser letrado”. A transição profissional entre o modelo escolar e a educação de adultos não acontecia de forma pacífica. As literacias escolares continuavam a ser dominantes, quer nas práticas didático-pedagógicas observadas, quer nas crenças dos formadores. O processo de reconhecimento e de validação de competências adquiridas ao longo da vida, por parte dos formandos, conduzia, sem dúvida, a transformações nas suas identidades letradas. Era através da escrita, ou seja, do uso da linguagem, que reconheciam eventos de literacia em que participavam, sobre os quais refletiam criticamente, vivendo assim um processo de reconstrução identitária no presente. A reescrita dessas histórias de vida, durante a elaboração do portefólio reflexivo de competências, a valorização das diversas esferas sociais de atuação, bem como a consciencialização mais profunda do que significa participar de práticas sociais letradas, não apenas as escolares, trazia mudanças a nível pessoal, sociocultural e linguístico.

3- No ano 2021, o conceito de literacia está a mudar?
R- É preciso considerar sempre a historicidade do conceito e o seu significado de forma situada, em função dos elementos geopolíticos, sociais e ideológicos envolvidos. Na minha perspectiva, o conceito de literacia, aliás, literacias, no seu uso plural, muda ao longo do tempo. Ele refere-se precisamente à condição e ao modo de participação do sujeito nas suas práticas sociais de oralidade, leitura e escrita que são dinâmicas e variáveis no tempo e nos locais de atuação. À medida que a tecnologia foi ocupando uma função preponderante (perigosa até) na sociedade, os textos multimodais e digitais adquiriram grande centralidade na vida das pessoas, por exemplo. Temos algoritmos que até já escrevem por nós. Em 2021, a pandemia do coronavírus tem vindo a alterar as práticas de literacia no contexto escolar, profissional e familiar de forma inédita. Em 2021, é também fundamental saber avaliar a fonte de um texto, o seu conteúdo e/ou a sua forma, em tempos de fake news, discursos anti-ciência e negacionistas para uma participação social e cívica crítica que se manifesta também no uso da língua e da linguagem, ou seja, através dos textos que ouvimos, lemos, escrevemos, interpretamos e produzimos constantemente.
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Rómina de Mello Laranjeira
Literacias na Educação de Adultos. Discursos e Identidades
Crescente Branco Editora