Rijneveld: É preciso muita força para segurar o mundo de alguém

CRÓNICA
| Célia Gomes

Há pessoas que nascem amanhecidas e outras que nascem anoitecidas, com um olhar sombrio expectando um milagre para se iluminar.  E é nessa noite que vive Cas, uma menina de 10 anos, com grande sensibilidade e poder de observação que, desde a morte precoce do irmão, vive num Invernoso breu- «Escuro? Onde? Sei lá, em todo o lado». Irmão que morre inesperadamente nas vésperas de Natal, engolido pelo gelo do rio, quando patinava num desejado concurso. A partir daí, o gelo invade Cas, os irmãos, os pais, a quinta. Gelo que cristalizou para sempre o Natal e os olhos de Mathies. Pais que não sabemos o nome e que se limitam a flutuar no meio dos filhos como fantasmas, para lhes satisfazerem as necessidades básicas de subsistência. Os fantasmas não têm apelidos, não falam, não acariciam, não sorriem, não ouvem. Pais conservadores, rígidos que, recordando Eugénio de Andrade, «passam pelas coisas sem as ver, gastos como animais envelhecidos» e para atenuar a dor se drogam com o ópio da religião, as missas de domingo, as orações de gratidão «pela miséria e pela abundância»  e os  salmos  com que a Autora tão bem  salpica este  desassossego da noite (e, acrescento, do dia!).  Marido e mulher destituídos de amor, de alegria e de afetos. Será isto vida? E os filhos, ao abandono, vão-se, lentamente, apercebendo desta frieza. «O pai e a mãe não dispõem de dias, parecem rastilhos nas nossas mãos, à espera de que alguém os acenda para nos dar calor?» (Haverá coisa pior do que esperar que alguém nos acenda?) Mas ninguém os acende e formam icebergs que colidem com os sonhos e aspirações infantis, fazendo-os naufragar. «Somos livros gastos, sem capa, do lado de fora ninguém vê do que tratamos», desabafa Cas. Cas, a protagonista em constante introspeção, a  que não desabotoa  o casaco como se este fosse uma armadura contra o frio, o frio da indiferença dos pais que a enregela («porque não posso saber o que se passa? Porque me deixam fora de tudo?»; o frio dos colegas de escola, que a acham estranha; o frio dos silêncios álgidos da quinta «crescemos com a palavra, mas faltam cada vez mais palavras na quinta». Cas a quem o gelo cegou os olhos da alma e que anda às apalpadelas à procura de uma escrita braille para poder ler novamente o mundo. Também os irmãos Hanna e Obbes querem uma leitura diferente do mundo. Também eles se sentem rejeitados, preteridos pelas vacas (que também se deixam adoecer, não sei se por solidariedade ou por fado), pelo cultivo da terra, pelo vazio. Mas, para se defenderem, inventam jogos, de recompensas e castigos, muitos deles de cariz sexual, nos quais Cas também participa, sem entusiasmo e sem iniciativa, pois a sua noite é tão grande que nem a deixa adolescer. E os três sonham fugir para a outra margem do rio, como se esta fosse a terra prometida. E sonham com um salvador. Quem não sonha?
Guimarães Rosa escreveu que «viver é um rasgar-se e remendar-se». Mas neste livro, o tecido que veste a família está tão gasto e frágil que já não se consegue remendar. Fragilidade presente em todas as páginas e que se agrava com o desenrolar da história «Somos frágeis? Tão frágeis como uma palhinha». E uma palhinha pode ser levada pelo vento, pelo vento do desassossego, que se agudiza durante a noite quando Cas se deita e o colchão range como eco do seu lamento. E Marieke Lucas aproveita estes momentos para caminhar, sem lanterna, no negro universo de Cas revelando-o com recurso à interrogação e à analogia. «Um dia quero viajar para mim mesma». Também eu quero, Cas… um dia! E é por estas revelações e uma escrita madura que vale a pena ler o soturno livro.
E a contrastar com este breu, o leite branco que é mugido pela manhã pelo pai e por Obbes e que todos bebem sagradamente ao pequeno almoço, talvez para aclarar e nutrir o sentir.
Tive esperança no poder miraculoso do leite. Esperança que se afundou e  derramou. Cas cansou-se de esperar pelo abraço do pai e foi à procura do abraço de Mathies. Abraçar é um ato corajoso. É preciso muita força para segurar o mundo de alguém. E ninguém se atreveu a segurar o mundo de Cas.
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Marieke Lucas Rijneveld
O Desassossego da Noite
Publicações D. Quixote  16,60€

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