Ricardo Gil Soeiro: O Enigma Claro da Matéria
R-O que me animou foi procurar demonstrar em que medida é possível surpreender na poética de W. Szymborska um posicionamento pós-humanista que se plasma no modo multifacetado como as composições poéticas da autora polaca ensaiam e põem em cena uma profunda revisão da cesura antropocêntrica que se instaura entre esfera humana e esfera não-humana. Subjaz ao livro o argumento segundo o qual a sensibilidade pós-humanista da poesia de Szymborska não visa um dogmático aniquilamento da ideia de humanismo. O que os seus poemas nos vêm, afinal de contas, mostrar é quão importante se afigura o subversivo riso nietzschiano, quão necessária é uma celebração dos mundos em contacto e das zonas em contágio, quão urgente é desafiar as cesuras incessantes de que falava Agamben. A reflexão parte essencialmente da leitura pormenorizada das seguintes obras: Paisagem com Grão de Areia (1998), Alguns Gostam de Poesia (2004) e Instante (2006). Trata-se da concretização de um fascínio que me tem acompanhado há já algum tempo. Levou-me algum tempo a materializar o deslumbramento com esta poesia. O interesse é já antigo e manifestou-se igualmente, numa outra esfera e num outro registo, na publicação da obra colectiva O Nada Virado do Avesso (com Teresa Fernandes Swiatkiewicz, editado pela Poética). O título desse volume toma de empréstimo um dos mais sugestivos versos de Szymborka e assume uma inegável ressonância existencial. Poder-se-ia dizer que perspectivar, com Szymborska, “o nada virado do avesso” seria, muito simplesmente, delinear um modo privilegiado de subverter o normal horizonte das expectativas que projectamos sobre o mundo, equacionando no tecido do ser outras possibilidades de existência.
2-Depois do estudo aprofundado da obra, qual o lugar que Wislawa Szymborska merece ocupar na poesia mundial? O que mais o surpreendeu na autora ao longo do processo de escrita do livro?
R- Um lugar cimeiro, naturalmente. Szymborska sempre foi amplamente reconhecida como uma das mais singulares e cativantes vozes da poesia polaca do pós-guerra, mas foi, de facto, por ocasião da atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1996 que a escritora polaca suscitou o unânime aplauso internacional. Terá sido a partir desse momento decisivo que a notoriedade de Szymborska enquanto poetisa maior se terá consolidado de forma irrevogável, configurando actualmente um inegável fenómeno de popularidade a nível mundial. Constata-se em Portugal uma tendência semelhante e faço notar um conjunto assinalável de volumes e antologias da autora polaca: Paisagem com grão de areia (Trad. J. S. Gomes), Lisboa, Relógio D’Água, 1998; W. Szymborska e C. Miłosz, Alguns gostam de poesia (Trad. E. Milewska e S. Neves), Lisboa, Cavalo de Ferro, 2004; Instante (Trad. E. Milewska e S. Neves), Lisboa, Relógio D’Água, 2006; Um passo da arte eterna (Trad. T. F. Swiatkiewicz), Lisboa. Esfera do Caos, 2013 e, mais recentemente, Uma Noite de Insónia. Antologia temática, bestiário poético ecocrítico ilustrado (Trad. T. F. Swiatkiewicz), Lisboa, Manufactura, 2019. Apesar dos traços distintivos do seu timbre poético, a marca universal da sua escrita confere-lhe um cunho intemporal que eleva a sua obra para além do contexto histórico-social da época em que inicialmente brotou. Os seus poemas revelam, de facto um inusitado cuidado formal e uma assinalável depuração de meios, tendo-lhe sido atribuído o epíteto de Mozart da poesia. Uma tal exigência revela-se, de forma sintomática, no título do poema que assinala a sua estreia como poetisa, “Procuro a palavra”, facto que pode ajudar a explicar a escassez da sua produção poética. Na verdade, foi essa escassez que mais me surpreendeu: em 57 anos de escrita, Szymborska publicou apenas cerca de 350 poemas, o que indicaria uma produção média de 6 poemas por ano…
3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R- Neste momento estou a preparar a edição da obra Magma, que me ocupou os últimos oito anos. A verdade é que não sei muito bem definir este livro estranho. O próprio título – Magma – aponta para uma mistura inextricável de diferentes matérias discursivas. Desde muito cedo, tive a percepção de que seria algo intersticial, um emaranhado de diferentes géneros: prosa poética, aforismos, ensaio, poesia, ficção… Estou a falar de questões formais, como é óbvio; mas a forma, o esqueleto formal, é apenas a via escolhida para se chegar àquilo que, a meu ver, a literatura guarda de mais essencial: um modo privilegiado de captar o que irrompe da fissura e do assombro. São 5 volumes que, muito em breve, serão publicados pela Abysmo: Tomo I: Tratado das Confidências; Tomo II: Caosmos; Tomo III: O Fulgor Volúvel do Devir; Tomo IV: Breviário Clandestino das Extravagâncias e Tomo V: Súmula das Aporias.
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Ricardo Gil Soeiro
O Enigma Claro da Memória
Abysmo 15€