Ricardo Gil Soeiro | Caligraphia do Espanto
1-O que representa, no contexto da sua obra, o livro Caligraphia do Espanto?
R- Após a publicação do meu primeiro livro de poesia, O Alfabeto dos Astros, estou em crer que este livro revela uma maior maturidade de meios expressivos, bem como uma maior contenção ao nível da exuberância e da intensidade das emoções no que toca à utilização da linguagem. Não pretendo, todavia, negar a validade do projecto anterior, no qual (apesar de algumas reservas) ainda me revejo. Muito simplesmente, não sou de todo partidário de uma poesia puramente intelectualizada, uma poesia exclusivamente cerebral, arquitectada de modo sublime, mas que pouco ou nada confidencia ao coração do leitor. Há versos (gosto de falar em versos…), há versos dolorosamente belos que nos atingem, que nos deslumbram, que nos desarmam, que nos desamparam: são esses que todos os poetas buscam (não há como negá-lo), um verso a que o leitor forçosamente deseja regressar, como um vício irresistível; pode ser somente uma breve linha ou uma afinidade electiva de palavras que nos faz olhar de modo distinto para o que nos rodeia, é essa a intangível flor azul de que Novalis falava (die blaue Blume). Gosto de ser perseguido por este tipo de aspiração; e é uma felicidade imensa quando estes versos precariamente nos visitam.
R- A ideia geral que subjaz ao livro é a ideia do espanto, do espanto primordial (taumazein) perante esse facto simultaneamente admirável e aterrador que é o de se existir, de se estar inelutavelmente lançado na existência. Obviamente que há aqui ressonâncias heideggerianas a que não me posso furtar (das Erstaunen): a contemplação do enigma e o mistério do Ser; mas, por outro lado, senti-me igualmente bastante próximo da noção do “principiar” que colhi da poesia de Herberto Helder. Procurei traduzir todas estas minhas preocupações numa linguagem poética que pudesse explorar um pouco mais a ideia que tenho da poesia como uma espécie de segredo dialogante (admirável contradição), como uma espécie de um nomear o mundo em surdina. É justamente esta temática que abordo na terceira parte deste livro, “Encantação Silenciosa”; trata-se de um ensaio poético, em que marcam presença autores como Derrida, Celan, Caputo ou Broch. Este ensaio é precedido por duas partes: “Caligraphias” (42 poemas) e “Margens do Segredo” (2 poemas), sendo que o livro termina com um longo poema intitulado “A Invenção do Sopro”. Para além de todos estes temas, há sem dúvida uma presença que sempre se encontrou irmanada com a minha poesia – a presença fulgurante da morte. É algo que me fascina e que me assalta os versos, quase irresistivelmente, quase encantadoramente. Gosto de falar desta presença que, em última análise é a derradeira ausência, de modo oblíquo… Broch dizia que a poesia é a mais estranha de todas as actividades humanas, pois é a única que se consagra ao conhecimento da morte. A morte e o amor são dois dos principais temas de todo o meu labor poético. Recordo-me que Leopardi dizia num dos seus magníficos poemas que o mundo apenas alberga duas coisas sublimes: o amor e a morte.
3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R- Neste momento já concluí o meu terceiro livro de poesia, intitulado Espera vigilante, e estou a terminar o livro Labor Inquieto. O primeiro, subordinado à temática da espera (a ideia nasce da noção da poesia como espera, como constante despedida, tal como esta assoma no livro A Morte de Vergílio, do escritor austríaco Hermann Broch), está dividido em duas grandes partes: uma primeira parte constituída por 45 poemas e por um poema longo intitulado “Diário de um Dia em Ruínas” (em que se entretecem os fios da temporalidade e da escrita); por sua vez, o livro Labor Inquieto é, porventura, em termos estruturais, o livro de poesia mais complexo que escrevi até à data. Encontra-se dividido em seis partes distintas com propósitos diferentes: 1) Iniciação ao Canto, 2) A Magia de um Nome, 3) E agora? (que será primeiramente publicado na Revista Ítaca), 4) A Nomeação do Enigma, 5) A Nudez do Mistério e Outros Recados; e, por fim, 6) Dívida de Luz. Por outro lado, em 2012, espero publicar um livro de carácter mais ensaístico que será o resultado da minha investigação no âmbito do pós-Doutoramento que estou a desenvolver na Universidade de Lisboa
__________
Ricardo Gil Soeiro
Caligraphia do Espanto
Edições Húmus