Ricardo Correia: “As peças tentam criar um fresco sobre a Europa”

P-Qual a ideia que esteve na origem deste livro Peças Breves sobre a Ascensão e Queda de uma Egoísta chamada Europa?
R- O meu processo de escrita costuma obedecer a dois critérios: interno (tentativa de investigação de um tema sem projeção de a colocar em cena) ou externo (investigação de um tema com a projeção de a colocar em cena).
Escrevi uma peça curta que funcionou (sem saber na altura) como epicentro deste projeto.  Foi a peça Um Amor sem Fronteiras que nasceu (internamente) como resposta à votação no Parlamento Europeu das moções chumbadas para busca e Salvamento de Vidas Humanas no Mediterrâneo. O motor para a escrita foi a abjeção pelas votações que não resolviam o problema dos salvamentos dos refugiados em alto mar, deixando-os à sua sorte, morrer por falta de salvamento.
Para a sua escrita convoquei uma memória biográfica – uma viagem num cruzeiro que partia de Veneza até à Grécia passando por vários países (a minha viagem de casamento), e cruzei com uma notícia que testemunhava a viagem de um casal recém-casado, mas para o ocidente.
Mais tarde quando decidi arrancar com o projeto de criação e investir na investigação sobre a Europa e esta obedeceu a várias fases. Primeiro, iniciei com a procura de uma questão. Algumas que levantei foram: O que significa para nós ser europeus? Quem representa quem? Qual é hoje o maior desafio que a Europa enfrenta? Que cenários existem para o futuro da Europa? E se a União Europeia cair, o que se segue?
Depois, elaborei uma listagem de matéria afeta à Crise Europeia, isto é, tudo o que me viesse à cabeça sobre o assunto e a questão para depois começar a escrever. Anotei estas: Refugiados, Erasmus, Interrail, Fronteira, Parlamento Europeu, Grandes Guerras Mundiais, Terrorismo, PIIGS, Timeline de momentos marcantes da história europeia e história pessoal, Jogos Sem Fronteiras, Línguas/tradução, Moeda única, Troika, Hino da Alegria, Festival da Eurovisão, Brexit, Holocausto, CEE. A seguir, consultei ideias e exercícios sobre mecanismos ficcionais de escrita para teatro, partindo do trabalho de dramaturgos tais como: David Mamet, Jean-Pierre Sarrazac, Joseph Danan, Margaret Atwood, Simon Stephens e José Sanchis Sinisterra. Finalmente, li vários livros sobre o assunto, entre eles: A ideia de Europa de George Steiner; The Enigma of Europe, pelos editores Walter Baier et all, editado pela Transform!; O Afável Monstro de Bruxelas de Hans Magnus Enzensberger; Europa à deriva de Slajov Zizek; O que é que a Europa quer? De Slajov Zizek e Screcko Horvat.
Assim iniciou o Lado A – Welcome to Europe . O lado B surgiu como consequência deste processo. E a junção do Lado A e Lado B, foram organizados sob o título – Peças Breves sobre a Ascensão e Queda de uma Egoísta chamada Europa.

P-O livro tem Lado A e Lado B com os antigos discos de vinil: o que encontramos para ler em cada lado?
R-O Lado A é composto por peças curtas escritas por mim pré-pandemia e designadas por Welcome to Europe.  O Lado B é composto pelas peças curtas escritas pós-pandemia designadas por Huis-CLos – A Europa entre 4 paredes, escritas por mim e por Vanesa Sotelo (Galiza/Espanha), Maxi Obexer (Itália/Áustria), Julia Holewinska (Polónia) e Deborah Pearson (Reino Unido).

P-Como foi trabalhar com outros quatro dramaturgos de origens tão distintas?
R-No convite para este projeto tentei reunir um painel de dramaturgos que formasse um mosaico de diferentes vozes europeias. Os primeiros convites foram endereçados a pessoas de quem já conhecia a obra e tinha estima intelectual, e também porque estavam a escrever sobre temas similares. Assim convidei a Vanesa Sotelo, dramaturga galega, ex-diretora da revista de teatro Erreguete e com a qual me fui cruzando desde há 3 anos em vários acontecimentos teatrais. E enderecei um convite à Maxi Obexer, dramaturga italo-alemã, que em julho de 2020 dirigiu um curso online no Obrador da Sala Beckett, que discutia questões sobre novas formas dramáticas entre o documental e o ficcional. Além de ter várias obras sobre a Europa. Elas aceitaram. Durante essa investigação, uma criadora polaca, Anna Galas, que organizou uma mostra de teatro contemporâneo polaco, em Varsóvia e Bidgoszsz, em 2015, e do qual participei, indicou-me a Júlia Holewisnka. Li sobre a sua obra e, apesar de não ter lido nenhuma peça, dirigi-lhe um convite para o projeto. Por fim, depois de ter escutado dias antes, um projeto sonoro de Deborah Pearson The Future Show,  decidi convidá-la para o projeto. A Deborah foi presença assídua nos palcos da Culturgest e tinha dirigido uma peça dela com o Teatro Juvenil do Teatro Virgínia (Torres Novas) para o projeto Panos, que ela viu na sala Garrett no Teatro Nacional D.Maria II, e onde falámos pela primeira vez.
Em cada um destes contactos tentei realizar uma entrevista individual via zoom, apenas a Vanessa se disponibilizou e as outras dramaturgas preferiram receber as questões por email e responder depois, com mais tempo.
No dia 24 de novembro realizámos uma reunião online com a Julia, Vanesa, Max e Deborah. Foi uma sessão introdutória para nos apresentarmo-nos e conhecer o projeto, tirar dúvidas e lançar o projeto. Decidimos criar um facegroup e uma pasta partilhada no Google drive para colocar o nosso trabalho, traduzido em inglês, e dar a conhecer uns aos outros. Para o processo de escrita enviei informação com os mesmos parâmetros para todos: Um: escrever sobre o mesmo tema, de forma documental e/ou ficcional sobre como foi viver entre quatro paredes durante a crise pandémica e de que forma isso mudou a forma de percecionar o que é ser e pertencer à Europa. O que viste da tua janela durante o confinamento durante a pandemia? O que se passou no teu país? O que se passou contigo? Dois: Um número personagens: de 1 a 3. E três: uma peça curta de 8 a 12 páginas.
O trabalho de cada autor foi autónomo, mas fomos dando, entre nós, feedback das propostas de cada um, e partilhando processos de trabalho. No livro existe uma entrevista que fiz a cada uma das dramaturgas sobre o seu processo de trabalho.

P-O pano de fundo, o grande cenário dos vários trabalhos é a Europa e a crise europeia: há certamente abordagens diferentes. Mas, a pergunta é: na diversidade, que pontos comuns se revelaram e exprimiram nas peças criadas?
R-Parece-me que as peças tentam criar um fresco sobre a Europa, a partir de procedimentos híbridos – ficcionais e documentais -, usando como matéria: notícias de jornais; autobiografia, testemunhos, episódios a temáticas que afetaram os cidadãos europeus, e várias leituras sobre a temática em questão – A Crise da Europa.

P-Este projecto dramatúrgico fez parte da tese de Doutoramento, certamente um trabalho de vários anos: e agora, que outros projectos de escrita teatral se perspectivam?
R-Neste momento escrevi a peça Cartas da Guerra (61-74), a partir de testemunhos de ex-combatentes da Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974), bibliografia temática e com a cumplicidade da Odisseia de Homero e ChatGPT.
Nesta peça, um filho, no tempo presente, 2023, escreve uma carta ao pai em 1972. Um diálogo com cinquenta anos de atraso. Um filho que procura o seu pai com os seus 20 anos. Uma odisseia sobre a Guerra Colonial Portuguesa.
É apoiado na mobilização do meu pai na Guiné-Bissau entre 72  e 74, bem como na investigação de Joana Pontes sobre 13 anos de correspondência entre militares mobilizados para a Guerra Colonial e seus familiares que ficaram em Portugal, e uma ampla bibliografia temática, esta investigação da correspondência da Guerra trocada à época, que revela o que ficou nas entrelinhas e escapou à censura do regime fascista português – as lacunas, subjetividades e silêncios de uma Guerra que ainda hoje continua guardada dentro de cada um. O espetáculo estreia a 25 de março no Cineteatro de Estarreja e depois vai no dia mundial do teatro, 27 de março, a Tondela (ACERT), dia 30 e 31 a Coimbra (Teatro Académico Gil Vicente) e dia 14 de abril a Santarém (Teatro Sá da Bandeira).
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Ricardo Correia
Peças Breves sobre a Ascensão e Queda de uma Egoísta chamada Europa
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