Ricardo Belo de Morais: “Pareceu-me irresistível imaginar um encontro e uma conversa de ambas as personagens”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste livro “Transição”?
R-Depois de ‘usar’ o pré-heterónimo Vicente Guedes como narrador do meu romance biográfico pessoano de 2014, “O Quarto Alugado”, sempre fiquei com vontade de voltar a dar protagonismo a esta personagem obscura – mas fascinante – da galáxia pessoana. Além disso, Fernando Pessoa nunca explicou porque é que começou a escrever o Livro do Desassossego debaixo da pena de Vicente Guedes, para depois desistir da obra durante quase 10 anos – e quando volta a ela, em 1929, outra vez sem explicar porquê, já é Bernardo Soares o autor do Livro. Pareceu-me irresistível imaginar um encontro e uma conversa de ambas as personagens, que assim tentam escapar à deriva em que Fernando Pessoa, de certa forma, as deixou. É verdade que o destino de Guedes e Soares não está nas suas mãos, mas ajudam-se ambos, no meu cenário, a ter um papel com mais sentido, enquanto ‘criadores’ de uma obra partilhada.
2-Que leitura é esta do “Livro do Desassossego”?
R-Quando se conhece a história arqueológica da escrita do Livro do Desassossego, era justamente a ausência de Pessoa ele-mesmo que tinha tudo para ser o motor do encontro impossível das suas personagens Vicente Guedes e Bernardo Soares. É a ausência de Pessoa que lança Vicente Guedes no limbo e até no desespero; e é essa mesma ausência de Pessoa que faz com que Bernardo Soares se sinta – neste meu enredo, naturalmente – como que na obrigação de apresentar-se a Vicente Guedes – e depois de perceber que Pessoa descartou aquele eu-outro-Vicente, sentir como que uma obrigação moral de revelar-se-lhe como seu sucessor. Pareceu-me também oportuno criar em palco uma atmosfera que nos mostrasse o Fernando Pessoa criador, sim, mas tantas vezes, como foi, recriador e reutilizador dos seus escritos, da “fase” Vicente Guedes para a “fase” Bernardo Soares. Estes reaproveitamentos são muito semelhantes ao que Fernando Pessoa fez na adolescência tardia e enquanto adulto jovem, com os seus pré-heterónimos ingleses. Apagar uns quando criava outros “melhores”, mas passar partes da obra dos apagados para os novos ‘outros’ que fazia nascer. Para mim, foi intencional quer colocar Vicente Guedes e Bernardo Soares numa conversa, quer colocá-los em relação directa, no palco, com as palavras escritas por Pessoa.
3-Pensando no futuro: Fernando Pessoa e a sua obra serão motivos de inspiração para novas dramaturgias?
R-Tenho seguido os conselhos de pessoanos consagrados como Teresa Rita Lopes ou Jerónimo Pizarro, que sempre me disseram para não me dedicar em exclusivo a Pessoa, porque “Ele” pode ser demasiado absorvente. A primeira peça que publiquei este ano foi um policial, “O Jogo do Veneno”; e a próxima será uma comédia. Ambas completamente fora do universo pessoano. Mas o apelo de Pessoa é-me incontornável. Voltarei ao teatro policial com a personagem Abílio Quaresma, um detective inventado por Pessoa; e estou a escrever uma ficção em palco sobre a vida privada de Álvaro de Campos. A “Carta Inorgânica do Estado Independente do Bugio“, prosa satírica e utópica de Pessoa, datável da segunda metade dos anos 1920, também tem um imenso potencial dramatúrgico – e tenho estado a trabalhar sobre ela.
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Ricardo Belo de Morais
Transição
Húmus 5€