Reler António Ramos Rosa mas… desordenado
CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha
E ao grande poeta deponho aos pés os seus próprios versos, desordenados por mim.
“Em qualquer parte um homem discretamente morre.
Ergueu uma flor.
Levantou uma cidade.
Em qualquer parte um homem
abre o seu punho e ri.
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
Eu sou homem que te ama e escuta
concentradamente no calor dum muro.
Aconteceram hoje palavras como folhas
na tua nuca de silêncio.
Um bicho obsceno e puro muito frágil seco
Porque não se pode começar no princípio
o impossível acto de ser
Aqui é a planície e o poço
Haverá outro país onde o silêncio reine?
Ele escreve. O seu desejo é o desejo
de tornar habitável o deserto.
O seu sentido é uma promessa de sentido
Ausência na presença plena
Se cada palavra é o limiar de um deserto, como incendiar os grãos de areia para construir a casa de fogo que é o poema?
Num ponto qualquer
sensualmente subtil
algo que antes não servia para nada
irradia agora habitada surpresa.
Uma deusa de água espraia-se nas palavras.
Como transpor a parede circular
das coisas?
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.
E todos os vocábulos são recentes como o orvalho.
O mundo é uma brecha um esplendor um redemoinho.
É um pomar de espuma.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
Onde é que nasce a sombra e a claridade?
Como dominar a desmesura da ausência e a vertigem?
Na verdade, o que procuro é um espaço para respirar.
Tudo está imóvel, fixo, como um centro.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.
O texto flui como um metal de água
como se de súbito um jardim invadisse a nossa mente
As teclas do verão, as indústrias da água.
O coração da chuva.
A que tendo vivido à beira do desastre
reconstruiu a dança
A que, fracturada, ainda fulgura
Anjos, existem anjos?
Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
Há uma nudez que assombra há outra que fulmina e há a que ilumina
Nos jardins minúsculos a brevidade e a delicadeza
e o corpo saboreia o horizontal relâmpago
Todas as imagens se reúnem numa gota de água
e é aí que eu nasço sobre o seio da terra
Mas tu és uma chama
sobre a mesa posta
porque amo o ouro vivo do teu rosto
o teu olhar de água iluminada
uma ilha de pálpebras
O meu corpo transformou-se numa proa de pólen
Há bois lentos e profundos no meu corpo
Escrevo como se escrevesse com os meus pulmões
ou como se tocasse os teus joelhos planetários
ou adormecesse languidamente no teu sexo.
Escrever é sempre outra versão
de um texto que nunca se chegou a compor
Quem escreve nunca está só na sua solidão de asceta
É então que inventas uma constelação em forma de barco
e regressas à rugosa identidade terrestre”
Peço desculpa ao poeta…
Somos contemporâneos de génios e não damos por isso.
Ler Ramos Rosa é como voltar a viver uma vida que julgávamos só nossa.
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António Ramos Rosa
Antologia Poética
Publicações D. Quixote