Proust, os livros e a minha leitura


CRÓNICA
| Susana Cristina Sousa

Hoje, com os 7 volumes de “Em Busca do Tempo Perdido” como testemunhas, Proust disse: “Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido” (O Prazer da Leitura, trad. Magda Bigotte Figueiredo, Teorema).
Com uma diferença de mais de 100 anos de idade e embora desconhecidos, procurámo-nos um ao outro nas múltiplas prateleiras de bibliotecas e diversas livrarias. Proust resgatou o meu tempo (não perdido, nem tão pouco esquecido). O meu tempo adormecido. Para além da barreira temporal e um país entre ambos, sem falar nas inúmeras revoluções, incluindo as tecnológicas, partilhamos algo imortal: o Livro e o Prazer da Leitura.
“Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros [dias da nossa infância], e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, (…) as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, (…) o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido (…)”.
Lembrou o episódio em que a cozinheira, com imensa antecedência, ia pôr a mesa e que nunca o fazia em silêncio. “(…) se ao menos ela a pusesse sem falar! Mas achava-se na obrigação de dizer: O menino não está bem assim; se eu lhe trouxesse uma mesa?”. No meu caso, sempre me irritou ser interrompida com tiradas como: “Ai filhinha, ler assim tanto vai estragar-te os olhos”. Ou com o clássico: “Vá, fecha o livro. Vamos para a mesa. Olha que ler não dá de comer”.
Em criança, despachava a hora de brincadeira obrigatória no parque e escapulia-se. Trepava a uma álea onde “o silêncio era profundo”. Diz, “os sinos tonitruantes (…) não se dirigiam a mim, mas a todos os campos em redor, a todas as aldeias, aos camponeses isolados nas suas terras, não me obrigavam de modo algum a erguer a cabeça, passavam junto de mim, levando as horas para regiões afastadas, sem me ver, sem me conhecer, sem me perturbar.”
Líamos de manhã, depois do almoço, após o jantar e “muito depois do jantar”. Assim que os nossos pais e avós de se deitavam, Proust acendia uma vela e eu um candeeiro silencioso. Prestávamos as últimas homenagens ao livro cujo final se aproximava. Enquanto eles se debatia com a insónia “pós-morte” dessa leitura devoradora, eu tentava ler cada vez mais devagar, atrasando a despedida. E sempre o assombro comum: “aqueles seres a quem havíamos dedicado mais atenção e ternura do que às pessoas da vida, (…) não voltaríamos a vê-los nunca mais, não viríamos a saber mais nada deles.”
Entretanto, fomos crescendo e Proust diz-me “que a leitura não pode ser assimilada a uma conversa (…), que o que difere essencialmente entre um livro e um amigo não é a sua maior ou menor sensatez, mas a maneira como se comunica com eles”. A leitura consiste “para cada um de nós em receber comunicação de outro pensamento, mas permanecendo a sós, isto é, continuando a usufruir do poder intelectual que se tem na solidão e que a conversa dissipa imediatamente, continuando a poder ser inspirado, a permanecer em pleno trabalho fecundo do espírito sobre si próprio.”
Como Proust, encontro na leitura uma amizade verdadeira, sincera, porque estabelecida com alguém ausente, é uma amizade desinteressada, genuína. Uma amizade entre mim e múltiplos outros, onde estamos vários e eu continuo a ser eu, e o meu espaço é respeitado.
A Leitura possibilitou-me e continua a empurrar-me para o Mistério, desvelando-me a mim mesma.
Ao contrário das vozes reprovadoras, a Leitura e o Prazer de Ler alimentam-nos e despertam-nos. Apuram os nosso olhos e suportam o nosso caminhar corajoso por montes ermos ou povoados.

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