Pequenos exercícios virtuosos de Cortázar
CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha
Este livro é resultado de alguns pequenos exercícios virtuosos, em que Cortázar se diverte na pele do seu alter-ego Lucas. Pequenas pérolas do seu talento inesgotável, o problema de haver pessoas e o problema de não haver pessoas, razões para não ir a concertos e a sua expulsão de muitos, as sete ou nove cabeças de hidra que todos temos, embora eu pense que temos muitas mais. Nunca somos um mas muitos, julgamo-nos singular mas somos plural. Tudo isto numa luta diária contra a realidade que nos torna tão mortais quanto o possível. A dicotomia dos jogos eróticos “zonas de extremo deleite às nove e quarenta tornar-se-ão desagrado às dez e meia.” As “meditações ecológicas” citando “Max Jacob: “no campo, esse lugar onde os frangos passeiam crus?” em que, já nas palavras de Cortázar “tudo parece resumir-se a ficar vezes e vezes seguidas estupefacto diante de uma colina ou de um pôr-do-sol que são as coisas mais repetitivas que se pode imaginar.” Mas é melhor não estar sempre a tentar encontrar razões para tudo porque “nalgum sítio deve haver uma lixeira onde se amontoam as explicações.” Excepto em casos excepcionais em que pessoas transportam mortos no lugar do morto para escaparem ao preço exorbitante dos transportes de cadáveres na Argentina. E a nossa função é continuar a ler pois “também daquele que ouve ou do que lê: desafiando sozinho a desmultiplicação da vertigem” como se vivêssemos com o perigo ao lado, com o precipício onde as histórias se encaixam, podendo mesmo chegar ao absurdo do peido de Dante: “avevan dal cul fatto trombetta”, ou de andar à porrada, embora, em algumas partes deste livro não se admitam “as vias de facto.” Prosseguir é o destino ou prosseguir até ao destino? No meio, dormir. Mesmo sabendo que “a sua consciência pesada tem tantas insónias como ele”, e “oxalá fosse possível/parar a meio do caminho/ao mesmo tempo que se avança.” Ficamos também a saber a preferência do autor à hora da morte: “o último quinteto de Mozart” ou apenas Earl Hines.
Acabo a crónica com o texto com o título Amor 77: “E depois de fazer tudo o que fazem, levantam-se, tomam banho, põem pó de talco, perfumam-se, penteiam-se, vestem-se, e assim progressivamente vão voltando a ser aquilo que não são.”
Assino por baixo.
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Júlio Cortázar
Um Certo Lucas
Elsinore 15,49€