Patti Smith: Porque não nos podemos limitar a viver

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Comecei a ler o “Devoção” da Patti Smith, gosto sempre do seu estilo cheio de introspecção, sonho, realidade imediata e viagens com cidades e escritores. Desta feita é Paris e o livro levou-me a Simone Weil.
Como a minha treinadora de ténis está com uma amigdalite, não tive treino à hora de almoço e resolvi ir comer uma salada (estou a tentar devolver uma forma humana ao meu corpo). Entrei na FNAC de Guimarães e procurei Weil. Não a encontrei mas algo chamou a minha atenção para um livro de Yukio Mishima na colecção Dois Mundos: “Vida à Venda”. Comprei e fui à salada com a “Devoção” da Patti à frente quando, para meu espanto, deparo com esta frase: “Descemos por umas escadas de mármore já muito desgastadas, passámos pelo salão azul e entrámos no jardim onde, sentado numa cadeira branca de vime, Yukio Mishima foi fotografado.” Era o jardim da editora Gallimard. Já não morremos hoje, Patti. Acto continuo, peguei no livro do japonês e outra coincidência, o tradutor para português era o mesmo Helder Moura Pereira.
Do livro devo dizer que adorei as partes (primeira e última) oníricas e diárias da autora, não me entusiasmando assim tanto pela ficção que aparece de permeio. Eu, que gosto tanto da Patti, fiquei um pouco sobressaltado por não a ter tido em todos os momentos deste livro, com a história do meio a reviver uma Lolita que, por mais actual que seja, nunca rivalizará com Nabokov.
Voltando ao início do livro, Patti passeando por Paris é um autêntico guia literário da cidade, ora mostrando o busto de Apollinaire feito por Picasso, ora passando pelo Hôtel des Étrangers onde pontificavam Rimbaud e Verlaine. “Paris é uma cidade onde se pode andar sem mapa na mão.” “O número 7 da Rue des Grands Augustins, onde Picasso pintou Guernica.”
Somos o que vivemos e escrevemos, somos também o que deixamos ficar quando partimos, mesmo quando dormimos e alguém, arguto, nos olha “Ocorre-me a ideia de que o jovens parecem belos quando estão a dormir, ao passo que os velhos, como eu, parecem já mortos.” Não é definitivamente o caso.
A absoluta definição do amor carnal: “eram ao mesmo tempo cães com cio e deuses celestiais.“
Acabando na casa de Camus com o último manuscrito do autor e com a pergunta: “Porque escrevemos?, pergunta em uníssono o grande coro de quem escreve. Porque não nos podemos limitar a viver.”
Pois não.
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Patti Smith
Devoção
Quetzal  15,50€

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