Patti Smith: Entrelaçando realidade, ficção e sonho
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Confesso que comecei o livro com algumas reservas, foi o primeiro que li da autora, achei até um pouco titubeante o início, mas depois entrei naquele ambiente onírico, onde a realidade se mistura com o sonho sem qualquer toque de surrealismo, com personagens reais e imaginárias, como refere Patti “sinto-me compelida a escrever com fervor e esperança, entrelaçando realidade, ficção e sonho.”
Escreve também em tempo real “o ato de escrever em tempo real com a intenção de obrigar o presente a desviar-se do rumo que está a tomar, de lhe escapar ou de fazer com que abrande, é fútil”, mas interessante, acrescento eu. Por isso apanha o ano do Macaco e o início do ano do Rato Metálico, com Patti entre os 69 e os 70 anos. “Quando há uma primavera precoce, a morte insinua-se” e foi o que aconteceu no ano do Macaco, com a morte dos grandes amigos Sam Shepard e Sandy Pearlman “O Sandy apertou-me a mão, mas a enfermeira disse que isso não queria dizer nada.” Mas isso podia não ser verdade pois “O Sandy tinha um coração que sabia pensar.” Ainda referências ao leito de morte de Allen Ginsberg, também aos romances negros com Bolaño e os seus jogos de tabuleiro e “Mike Hammer e a sua assistente Velma, que tanto irradiava esplendor como desprendimento”, às fotografias da sua Polaroid, Alice no País das Maravilhas, o Flautista de Hamelin, animes, comics e a Medeia de Pier Paolo Pasolini. A música dos Grateful Dead e dos Blue Oyster Cult.
Entre este e oeste, Patti por vezes à boleia pela América nesse ano de Trump (que nunca nomeia, talvez por nojo), muitos pequenos hotéis, muitos pequenos almoços, numa paisagem que faz lembrar Kerouac (aliás mencionado), mas sem o desvario frenético do autor de “Pela Estrada Fora”. “Eu podia sentir perfeitamente a atração gravitacional da minha casa, que é uma coisa que se transforma na atração gravitacional de outro lugar quando fico em casa demasiado tempo.”
E ainda duas viagens fora da América: o retábulo de Gante e o Pessoa em Lisboa.
Mas, acima de tudo, “devemos fazer os possíveis para aumentar a esperança no coração de cada homem”.
E a estrada, “lá fora, a chuva parara, mas persistiam os ventos fortes. E aquilo que era verdadeiro continuava verdadeiro.”
Mas o mais importante de tudo é que “continuo convencida de que está para acontecer qualquer coisa de maravilhosa na minha vida”. E todos nós.
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Patti Smith
O Ano do Macaco
(Tradução do Helder Moura Pereira)
Quetzal