Para relativizar as grandes tempestades

CRÓNICA
| agostinho sousa

Livro lido e relido num par de horas, plenamente lapisado, tão difícil de o comentar sem escapar a tantas dessas passagens sublinhadas.
Na sequência do anterior “Silêncio na era do ruído”, do mesmo autor, tinha ficado preso às reflexões e às histórias da vida de este excecional explorador que já viajou por cerca de cem países. Neste livro podemos verificar que um jovem estudante disléxico e mediano, alvo de bulling em criança, sem características particularmente atléticas, foi capaz de, a partir de uma grande força de vontade, acreditando em si, apoiado em objetivos claramente traçados e com imensos riscos, ter alcançado momentos ímpares, capazes de tornar a sua vida mais vivida e vívida.
«O que mais me ajudou a silenciar a pequenina voz da negatividade dentro de mim foi tornar-me consciente de onde vem e de que aquilo que ela diz raramente merece atenção».
Entrecruza as suas viagens, os momentos mais arriscados e os mais gratos, com as suas reflexões complementadas por relatos e vivências de outros exploradores e filósofos.
Pelo meio fala da vontade de ultrapassar obstáculos, da coragem necessária e daquilo que é preciso para programar, metodicamente, na tentativa de evitar riscos, sem esquecer os potenciais azares e o erro, porque «se uma pessoa nunca cometesse erros, isso seria, para começar, porque nunca arriscaria o suficiente», para atingir os seus objetivos. E, no entanto, não apresenta tais vivências como o melhor dos mundos e, sem qualquer vã glória da sua parte, compara os seus com outros atos de coragem quotidiana, de que destaco dois exemplos:
– «Comportar-se como deve ser nas inúmeras situações de uma existência normal, e ser honesto tanto consigo mesmo como com os outros, é na maior parte das vezes um desafio maior e mais exigente do que uma viagem onde tudo acabará em determinado ponto geográfico»
– «Há algum tempo, na Noruega, falei com uma mulher que trabalhara como prostituta na nossa capital. Disse-me que tinha ficado muito impressionada por eu ter desafiado o frio, o vento e o perigo para atingir os meus objetivos. Isso aconteceu na véspera de Natal e eu disse-lhe que a meu ver ela demonstrava muita coragem na sua vida quotidiana. Andar de minissaia por Oslo a pé, com vinte graus negativos, e depois entrar no carro de um homem desconhecido – e entregar-se a estranhos -, para isso é preciso bravura.»
Este livro é também um auxiliar para relativizarmos as grandes tempestades que, por vezes, temos de enfrentar (inventadas) num copo de água. Trata de sentimentos como a alegria, a felicidade e as frustrações e, fundamentalmente, o que cada um de nós quer (ou pode) fazer (dos desafios) para aproveitar e desfrutar a sua vida.
«A vida, enquanto consumidor de produtos, mas também de sentimentos e de tempo, consiste, regra geral, em obter o máximo possível a partir do mínimo de esforço. Nas expedições, trata-se mais do contrário. No gelo e nos oceanos, e nas montanhas e nas florestas, aprendi que menos pode ser mais. Tive de percorrer uma longa distância para, por fim, entender que o pouco pode saber a muito, o menos é mais saboroso.»
Por fim, não deixa de ser cativante (e motivador para aqueles que se desculpam estarem cansados, ao fim de um dia de trabalho, para a leitura) pensar numa pessoa que, depois de ter percorrido a pé uma longa jornada, sozinho, com pausas de dez minutos entre cada duas horas, com a mesma roupa durante três semanas, carregado com o mínimo indispensável («o estojo de ferramentas pesava 1256 gramas»), montando e desmontando o seu acampamento dia após dia – tudo isto num frio gélido e sem vivalma – ter a autodisciplina de cumprir estas rotinas e, antes de se deitar, «ler um pouco».
Espinho, 08/12/2022
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Erling Kagge
Filosofia para Exploradores Polares
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