Os ladrões que destroem a nossa vida
Mais austeridade, mais desemprego, mais pobreza… e os ricos mais ricos. O que se passa afinal, como é que esta crise nos caiu em cima e quem são os seus responsáveis? Entre uma panóplia de livros em “economês” que tentam explicar-nos que os culpados somos nós – os que vivem do trabalho e pagam impostos e agora veem-se, sem saber porquê, atirados para o desemprego e para a miséria – apareceu recentemente um livro com uma perspetiva diferente. Trata-se de “A troika e os 40 ladrões”, do jornalista e escritor espanhol Santiago Camacho.
O campo de especialização do autor, como assume logo de início, é o terrorismo, o crime organizado, as sociedades secretas, as conspirações – nada que “em teoria” tenha a ver com o mundo das finanças. Mas só em teoria, porque ao fazer a pesquisa para este livro Santiago Camacho viu “claramente o rosto do Mal”. São os homens das grandes organizações internacionais, das agências de rating, das corporações. “A partir dos seus imaculados gabinetes, sem sujar as mãos, centenas de seres humanos, praticamente anónimos para a maioria de nós, jogam com as vidas de milhões de pessoas, que ignoram que as suas vidas, os seus empregos, as suas pensões de reforma e o futuro dos seus filhos estão sobre a mesa de um descomunal casino mundial.”
Camacho não descobriu nada, mas revela tudo ao leitor incauto que ainda não percebeu por que a sua vida está a ruir, neste mundo dividido em “dois bandos irreconciliáveis”: os poucos que têm muito e os muitos que têm pouco. “A atual crise económica revelou perante os olhos de muitos cidadãos que os governos não são realmente os órgãos que detêm o poder mundial”, mas são “brinquedos” de “forças misteriosas” chamadas “mercados”. “Está tudo à vista”, diz Camacho, sobre a existência de organizações “que manipulam os cordelinhos do mundo”: são organizações como Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organização Mundial do Comércio (OMC), as agências de rating, os bancos internacionais. “O realmente alarmante é que os dirigentes destas organizações não são eleitos, não passam por nenhum filtro democrático nem há maneira de os cidadãos poderem afastá-los dos seus cargos, apesar do impacto que as suas decisões, doutrinas e estratégias têm sobre a vida dos povos”.
A obra não pretende dar respostas definitivas mas apresenta um vasto conjunto de dados das mais diversas fontes para que cada leitor possa responder às questões que todos os dias coloca: Quem governa o mundo? Qual o poder real dos políticos? Até que ponto a nossa vida é condicionada por organizações internacionais e corporações privadas? Qual é o verdadeiro papel do FMI, BM e OMC? O que está realmente a acontecer na economia mundial e como chegámos a esta situação?
O livro faz um enquadramento histórico desde a reunião de Bretton Woods em 1944, quando foram estabelecidas novas regras para as relações comerciais e financeiras mundiais, passando pela evolução das organizações internacionais que comandam os destinos do mundo, pelo “famoso” consenso de Washington (“a enésima tentativa da classe política e económica para minar o poder das bases do povo e substituí-lo por uma estrutura de poder alternativa ao sufrágio universal”), até ao modelo neoliberal que vingou nas últimas décadas, com tudo o que trouxe consigo: paraísos fiscais, agências de rating superpoderosas, escândalos, engenharia financeira (da filosofia especulativa da alavancagem à “economia do papel fundada sobre o cadáver da economia real”)… e o reverso da medalha: colapso das bolsas, crise financeira e económica, austeridade, resgate de países impondo condições draconianas, desemprego e miséria.
Santiago Camacho lembra que foram as agências de rating que converteram as hipotecas “subprime” numa armadilha, “concedendo a classificação máxima a produtos que agora consideram lixo e aceitando encargos remunerados para que esses produtos tóxicos tivessem a nota máxima”, ao mesmo tempo que autoalimentam as dificuldades dos países com as suas classificações. O escritor avança o caso de Portugal como o melhor exemplo: “Em junho de 2011, a Moody’s desceu quatro pontos de uma só vez a classificação portuguesa, atirando o país para o terreno das obrigações de lixo e agravando ainda mais uma situação já de si delicada. (…) A Moody’s justificava a sua decisão pelo facto de acreditar que Portugal iria necessitar de um segundo resgate, coisa que eles próprios estão a contribuir para que aconteça.”
O nosso País merece mesmo um capítulo, o 11.º, com o elucidativo título “Portugal, a autoestrada para o inferno”. Santiago Camacho traça o percurso desde as eleições legislativas de 2009 à aprovação, pelo Parlamento, do Orçamento do Estado para 2012, lembrando a recusa de Sócrates em pedir um resgate, as lutas políticas entre os partidos com assento parlamentar, o papel das agências de rating no disparo da dívida e na escalada da crise, a chegada da troika, a mudança de governo, a “surpresa” da Madeira e a austeridade. Uma nota ainda sobre o papel do movimento sindical, nomeadamente com as duas greves gerais.
Camacho desconstrói ainda o “mito da competitividade”, ou seja, demonstra que ao contrário do que nos querem fazer crer não existe uma relação direta e clara entre salários e competitividade, dando como exemplo um estudo da Comissão Europeia sobre a Alemanha, que conclui que “o dinamismo da exportação alemã explica a totalidade prática de 7,3% de aumento anual médio do seu volume de exportação entre 1999 e 2008, enquanto a fixação de preços competitivos incidiu apenas em 0,3%”. Ou seja, “as empresas serviram-se do sacrifício imposto aos trabalhadores alemães durante todo um decénio para margens comerciais e dividendos, em vez de criar emprego sendo mais competitivas”.
Aliás, o exemplo da Alemanha que nos é “vendido” diariamente é, também, uma mentira, segundo Camacho. “Os trabalhadores alemães vivem em perpétua chantagem com o ‘outsourcing’: em 2004, a Mercedes ameaçou transferir a sua produção para a África do Sul se os trabalhadores alemães não acabassem com os bónus de produção e prolongassem gratuitamente o horário de trabalho”.
Os números do desemprego alemão, usados como modelo em toda a UE, são também uma falácia: “Os dados do desemprego alemão não são reais, mas estão muito bem cozinhados: não são contados aqueles que têm mais de 58 anos, nem trabalhadores no desemprego que frequentam cursos de formação, nem os trabalhadores que usam as agências privadas de emprego para procurar trabalho, nem 1,2 milhões de trabalhadores sem emprego não contabilizados como tal, nem 4,2 milhões de pessoas com trabalho a tempo parcial.”
Nesta história há inocentes e culpados: o problema é que os inocentes somos nós. Como lembra o autor, “depois de 200 anos de vigência de um modelo político mundial baseado nas nações-Estados, estamos pela primeira vez perante o aparecimento de um novo modelo que ameaça a Humanidade com o desmantelar do Estado de bem-estar (consolidado através de um século de lutas e conquistas sociais), e com a instauração de um governo mundial privado de cariz plutocrático”.
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Santiago Camacho
A troika e os 40 ladrões
A Esfera dos Livros, 21€