Os beijos de Manuel Vilas

CRÓNICA
|agostinho sousa

É um livro sobre o amor, mas um amor intenso que pode ser curto mas imenso e, por isso, tornar-se duradouro nem que seja pela sua recordação. Ou talvez seja mais sobre o desejo ou o erotismo. Ou sobre aquilo que rodeia essa relação. Enfim, um pouco de tudo para dosear uma paixão desmedida entre um homem e uma mulher.
A páginas tantas surge a pergunta: «De que te serve ter o cérebro e a inteligência de Carlos Magno ou de Albert Einstein se não estás enamorado. E aí reside o mistério.»
Esse amor nasce à primeira vista, de um mistério por explicar que resulta duma troca de olhares, um galanteio, de algo que unirá dois seres desconhecidos. O que vem depois e o que estava antes cirandam nessa relação especial que parece surgir do nada mas que se irá fortalecendo, sabe-se lá até quando.
Um mal maior será uma das razões desse encontro: o COVID. O confinamento obrigatório leva esse homem a refugiar-se numa cabana, algures num povoado de montanha. Acompanham-no dois livros: a Bíblia e o “D. Quixote” de Cervantes.
O número de personagens é diminuto mas o COVID, a Bíblia e “D. Quixote” estarão sempre presentes entre esse enamoramento. É, portanto, uma narrativa bem atual daquilo por que passamos há tão pouco tempo nas nossas vidas. O que recordamos, talvez, como algo longínquo, mas que nos alterou os comportamentos.
É o retrato de um amor palpável e carnal, capaz de ir resistindo a uma transformação dos relacionamentos por causa de algo tão inédito, estranho e, aparentemente, minúsculo: um vírus.
Uma relação de um homem, quase sexagenário, por uma mulher bem mais jovem. Dois seres de mundos e passados tão diferentes que não serão motivo suficiente para que ela entre na vida dele e este passe a chamar-lhe de Altisidora, nome de uma personagem do “D. Quixote”.
À volta há uma sociedade em transformação, em reclusão, onde a liberdade é sempre posta à prova pelas restrições que os dois vão contornando, porque há algo mais forte que não permite que se desunam.
Pelo meio submergem as diferenças das suas vidas passadas, mas nem isso retrai esse enamoramento. E todo o jogo erótico que praticam alimenta-se pela falta de tempo para a rotina, para o cansaço, o aborrecimento, a diminuição da paixão, do desejo «e a chegada desoladora do desamor».
E, no meio de tudo, os beijos permanecem como um cimento desse crescendo apesar das máscaras – de proteção e isolamento. No entanto, vivem com uma dúvida permanente: até quando conseguirão manter essa chama.
A páginas tantas, ele pergunta-se quem lhe terá oferecido Altisidora. E como consequência obtém mais interrogações:
«O vírus?
Deus, o destino, o acaso, o nada, a vida, a História, a alucinação, a loucura, Cervantes?»
Cada leitor procurará a sua resposta, porque trata-se de um livro que aponta incertezas.
Como o desfecho desse enamoramento não deve ser desvendado, resta recordar os dois versos, de Franco Battiato, com que se inicia a leitura:
A estação dos amores vem e vai
e os desejos não envelhecem apesar da idade.
E sublinhar a importância de nos sentirmos vivos, independentemente da idade.
Espinho, 10/04/2022
__________
Manuel Villas
Os Beijos
Alfaguara  21,95€

Manuel Vilas na “Novos Livros” | Entrevista

COMPRAR O LIVRO