Onofre Santos: “Um peregrino incansável, dotado de uma fé inquebrantável no poder da palavra”
1-No ano do centenário de José Saramago, qual o principal legado do escritor?
R-Esta pergunta leva-nos a pensar que um escritor acaba sempre por nos deixar, para além das suas obras, uma mensagem testamentária que as engloba e ultrapassa e deve ser descodificada com recurso à sua própria escrita. De algum modo esse legado se reconstituiria numa projecção do seu eu para além das fronteiras da vida ou, de uma forma mais prosaica, a imagem como gostaria de ser recordado. Tal como aquelas figuras que por actos de santidade mereceram ser canonizadas ganhando o direito a figurar nos altares, porque não José Saramago pelas histórias que inventou e pela feição literária como as contou, terá igualmente ganho os fulgores do mesmo tipo de entronização e de culto? Não foi por acaso que José Saramago escreveu de forma tão vivenciada o seu Evangelho Segundo Jesus Cristo. José Saramago não pode deixar de ter sido atraído pela modéstia da profissão de José, carpinteiro ou construtor de pequenas casas, num lugarejo tão pobre e arredado do mundo como Nazaré, que terá ensinado ao filho que viria a ser tão famoso, os rudimentos daquela profissão. Tal como aconteceu com José Saramago, não foi indiferente para Jesus esse começo tão modesto para chegar a carpinteiro de palavras e construtor de parábolas de tal modo excitantes que os discípulos rendidos não hesitaram em trocar as redes de simples pescadores para seguir aquele que tinha como mais ninguém, “palavras de vida eterna”. José Saramago foi um imitador de Jesus, iniciado desde muito cedo na arte das palavras, de as amaciar, talhar, tornear, polir, encaixar, primeiro lidas, depois relidas, traduzidas e reflectidas nos seus múltiplos sentidos, até que finalmente um dia, qual epifania, revelou as suas próprias, assumindo o ofício do criador, obedecendo a um desejo incontrolável de que também elas fossem de vida eterna. Se todo o escritor é um criador, nem todo o escritor se aproxima tanto do escritor sagrado quanto Saramago. Se ele não se declarasse ateu ou agnóstico, o que vem a dar ao mesmo, Saramago seria mais um evangelista, não menos inspirado que Mateus, Marcos, Lucas ou João. Não só no seu Evangelho, como em outros dos seus livros perpassa esse sentimento bíblico, desde Caim ao próprio Memorial do Convento até aos Ensaios sobre a Cegueira e sobre a Lucidez. Consciente ou inconscientemente, Saramago seguiu as pisadas de Jesus que também curou os cegos e a todos quis que vissem a verdadeira luz, isto é, a lucidez. Como Jesus que nada deixou escrito – os Evangelhos apenas narram um breve momento em que Jesus diante dos acusadores da mulher adúltera se inclinou e “escreveu” com o dedo sobre a terra – Saramago também privilegiou a oralidade, as suas palavras ressoam mais nos nossos ouvidos que na memória visual. A obra de Saramago paira sobre a multidão de livros que ele devorou durante toda a sua vida incluindo a Bíblia -o livro dos livros – e também ele quis ardentemente escrever a boa nova literária, aperfeiçoar tudo o que havia sido escrito antes. Também ele terá sido tentado a esse ponto? Ou foi apenas um sonho que começou naquela noite longínqua da sua infância em que dormiu debaixo de uma figueira ao lado do avô? Estavam ali a árvore da vida e a sabedoria sob o concavo celeste onde luzia o Caminho de Santiago, nome pelo qual era conhecida a Via Láctea. Penso, por isso no legado de Saramago como o de um peregrino incansável, dotado de uma fé inquebrantável no poder da palavra, na construção de histórias nunca ouvidas, como o caminho da salvação, dele próprio e de todos os que o lerem.
2-Qual é o seu livro preferido escrito pelo nosso Nobel?
R-Pelo que acabo de dizer, a minha preferência vai para o Evangelho segundo José Saramago, como prefiro chamá-lo, pois todos os Evangelhos são de Jesus Cristo segundo os seus autores respectivos.
3-Razões dessa escolha?
R-As razões já não são tão óbvias, tanto mais que li primeiro O Ano da Morte de Ricardo Reis, depois O Memorial do Convento, O Cerco da Cidade de Lisboa, O Ensaio sobre a Cegueira e só muito depois o Evangelho, como se tivesse precisado de conhecer melhor a alma do autor antes de penetrar no santo dos santos da sua literatura. Também Saramago como o seu personagem Jesus viveu confinado entre o Calvário e o Tabor. Como Jesus procurou refúgio no deserto, não muito longe do mar, procurando sobreviver às últimas tentações. Cem anos depois de ter nascido na modesta Azinhaga o Nobel fez dele um santo da literatura mundial, derramando sobre todos nós a esperança fugidia de o podermos seguir.
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Onofre Santos, Escritor