Olga Tokarczuk: Um livro inquietante
CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha
É o primeiro livro que leio da autora Nobel da literatura. Gostei do início, até achei empolgante, mas pouco a pouco o livro foi-se tornando inquietante, por vezes sombrio na sua tentativa conseguida de nos trazer de volta à nossa triste humanidade, ao nosso decrépito corpo mortal.
Dir-se-ía que jogo em casa com tantos corpos, anatomia e dissecção e conservação de órgãos, mas não. Eu gosto é de corpos vivos. “E, subitamente, descubro a verdade: não há nada a fazer-existo.”
Começa então assim, com a viagem como motivo ou desígnio: “Eu sonhava, quando fosse grande, trabalhar numa barca daquelas, ou, melhor ainda, tornar-me uma barca.” Mas também começa a fraqueza “pela teratologia e pelas aberrações” e também por aeroportos e aviões.
“Só o que é diferente perdurará” é uma frase um pouco assustadora, mas há mais: “semi-hominídeos, cujas vidas nunca ultrapassaram a mágica fronteira da potencialidade.”
Voltemos à viagem porque “quando viajo, desapareço do mapa. Ninguém sabe onde estou”, ou seja, será diferente dos bárbaros que “não viajam, dirigem-se directamente para o destino ou, então, fazem incursões.”
A propósito dos originais e das cópias, para as coisas, mas também para as pessoas: “As coisas importantes são aquelas que são únicas e sobre as quais paira uma terrível ameaça de destruição.”
E mesmo as coisas importantes, ou os sítios, podem ser desgastados pelos guias turísticos “Descrever é como usar – desgasta…descrever é destruir.”
Sempre a atracção pelo avesso, pelo que não pode ser descrito “deveria existir uma outra compilação do conhecimento com tudo aquilo que não sabemos – o inverso, o avesso, o forro do saber.”
A procura do ponto exacto “que, no sistema das coordenadas geográficas, existe um ponto perfeito, onde o tempo e o espaço chegam a acordo.” Talvez o ponto onde tudo se junta, como com as coincidências de que tanto gosto “como sincronismo – uma prova de que o mundo faz sentido.” E novidades paralelas “se estiveres no fundo de um poço, conseguirás ver as estrelas, mesmo durante o dia.”
“Sabias que partilhas o dia do teu aniversário com nove milhões de pessoas na Terra?”
E ainda, Lara Croft no meio de burkas, a vagina que termina “num beco sem saída”, e a verdade que “é-o sempre, em certo sentido”, “como se a seguir ao verbo se abrisse de repente um abismo.”
A viagem, as viagens que saram: “nada cura melhor a melancolia do que a observação de mapas.” O movimento como forma de fugir ao mal segundo a seita ortodoxa “Bieguni”.
E ainda ictiólogos crentes no criacionismo, mas também verdades universais: “para viver o homem precisa de um ambiente climático mais ou menos semelhante àquele onde crescem os citrinos.”
Sim, é um livro de viagens, por esse mundo fora, por nós dentro, pela nossa imensa mortalidade. Afinal de contas “de onde nos veio a ideia de sermos imortais?”
E é mais do que certo que “não vale a pena competir com a noite.”
Vou ler outro.
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Olga Tokarczuk
(Tradução da Teresa Fernandes Swiatkiewicz)
Viagens
Cavalo de Ferro 20,99€