Olga Tokarczuk: Sem peso na consciência porque se trata de vingança

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Entra-se no livro como num ambiente onírico e telúrico, montanhas e mitos, astros e horóscopos, cabanas isoladas com vizinhos estranhos, eremitas cansados e mortes por explicar. William Blake ajuda à narrativa, mesmo quando não nos apercebemos disso. Uma espécie de “Crime e Castigo” sem peso na consciência porque se trata de vingança.
No ritmo do livro há desprendimento e convicção, por mais que ambos pareçam desavindos.
Não estamos sempre de acordo, mas “é sempre assim com as lanternas: só se vêem durante o dia.” Na fronteira entre a Polónia e a República Checa nem sempre se consegue saber onde estamos, o que somos ou o que é melhor para nós. Não será sempre assim, na nossa fronteira com os outros?
A vida não é garantia de justiça, nada o é, principalmente quando há algo mais à mistura: “Talvez ele fosse protegido por anjos-da-guarda. Às vezes, acontece-lhes ficar do lado errado.” Como todos nós, apesar de existirem alguns piores e ser fácil dar por eles? “Os seres diabólicos reconhecem-se sempre pelos pés, porque pisam a terra de outra maneira.”
Mas o que comanda o livro é a ira, a raiva surda, o ódio não reconhecível mas reconhecido, “A Ira faz com que a mente se torne lúcida e aguda, e veja mais além. Apodera-se de outras emoções e domina o corpo. Não há dúvida de que toda a sabedoria nasce da Ira, porquanto a Ira é capaz de ultrapassar todos os limites.”
Mesmo no caso de pessoas  honestas e calmas, como todos nós, a ira espreita em estreitas vias, logo ali onde não podemos reconhecer os nossos actos porque alheios somos a nós e à nossa vida “É para isso que servem as nossas casas, para nos protegerem deste céu que, de outro modo, se infiltraria até ao interior dos nossos corpos.” Mas também para nos protegeremos ignorância que antecede a violência pelo alheamento. Existem assim três tipos de pessoas: “esquiadores, alérgicos e condutores… os esquiadores são hedonistas…os condutores, pelo contrário, preferem ter o destino nas suas mãos…e os alérgicos, por sua vez, estão sempre em pé de guerra.” Eu acrescentaria ainda outros. Mais por não me enquadrar em nenhum, menos por ser uma mistura de todos.
Continuamos com uma diatribe contra os escritores com a qual até posso concordar: “ A primeira coisa que nos ocorre é a suspeita de falsidade – uma pessoa assim não é genuína, mas sim o molho em constante observação, e tudo aquilo que ver transforma em frases e, desta maneira, priva a realidade daquilo que é a sua característica mais importante – o inexprimível.” Apesar de ser esse mesmo inexprimível aquilo que o poeta procura. Em vão? Quero acreditar que não.
Algo que nos salve dos sonhos maus que não serão mais que as nossas culpas e os nossos medos “Numa antiga tradição, para lutar contra os pesadelos é preciso contá-los em voz alta para a sanita e, depois, puxar o autoclismo.” E serão mesmo as noites más a origem das religiões? “- Estás a dormir? – perguntou./- Tu és religioso? – Eu tinha de lhe perguntar isto./- Sim – respondeu com orgulho. – Sou ateu.”
Chegar a um consenso, eis a tarefa impossível, está provado na experiência humana, em todos os campos da ciência, da arte ou do amor “o problema é que cada um tem a sua versão do mundo, e por isso é tão difícil as pessoas entenderem-se.”
Mas não será essa a nossa riqueza?
__________
Olga Tokarczuk
Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos
Cavalo de Ferro  19,45€

COMPRAR O LIVRO