O próprio livro de Sarr é um labirinto

CRÓNICA
| Célia Gomes

Roberto Bolaño, em «Os detetives selvagens», escreveu: «e um dia a obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirá o sol e a terra, o sistema solar e a mais secreta memória dos homens». Não sei o que se vai passar com a obra de Bolano, assim como com a de muitos outros autores, mas sei que «A mais secreta memória dos homens», de Mohamed Sarr não se finará nem se desencarnará tão cedo da minha lembrança. Um livro cujo ponto de partida é o jovem escritor Africano desaparecido, Elimane, («um hápax, um daqueles astros que só aprecem uma vez no céu de uma literatura») e a sua única obra «O labirinto do Inumano» que continha «a catedral e a arena». O próprio livro de Sarr é um labirinto, onde acompanhados, não por  inumanos, mas sim pelo sensível  aspirante a escritor, o Senegalês Diégane Faye, procuramos seguir as pegadas invisíveis de Elimane, volatilizado do mundo «sem ruído, como um por do sol no Oceano». (Também eu desejo, um dia, desaparecer assim da vida!). Mas para Diégane, perseguido por nós leitores, conseguir sair desse enredo, tem que saber responder à pergunta de quem é verdadeiramente o «demónio» Senegalês Elimane «que possui. Mas ele próprio também está possuído». E aparecem-nos um turbilhão de pessoas que seguimos,  esfaimados pelas suas pistas que nutrem a nossa fome de resposta. E estas pistas são-nos fornecidas como se estivéssemos num «Escape Room» pelas memórias de «Siga D.», de familiares e amigos que conviveram com o flamejante escritor, apelidado «de Rimbaud negro», visando, (como escreveu o verdadeiro  Rimbaud) que «Venha o instante que as almas encante!». Memórias inundadas de misticismo, de espera, de afagos, de paixão, de contrastes, de traição e de busca. Todos esperam por Elimane, principalmente a sua mãe, Mossane, que enlouquece perdida na sua própria pergunta (quem será o pai de seu filho?!). É ela que nos dá uma  sublime definição da palavra espera, «como é aborrecido e ilusório pretender calcular a espera, que aliás não se mede em horas dias meses anos, mas em unidades de medida da decomposição da alma: quedas existenciais, apocalipses espirituais, extinções mentais, enquanto esperamos, ou porque esperamos». Mossane, que amou dois homens, dois irmãos gémeos, Assane e Ousseynou. Assane que simboliza, na história do Senegal, os que idolatravam os colonizadores, os «cultos», os brutos polidos franceses e que trocaram a sua cultura, a sua pátria Natal e ancestral, pela «pátria fatal» e Ousseynou, o cego vidente, o defensor do Senegal, dos seus indígenas, das tradições, das suas lendas. Aliás, este contraste e este fosso cultural percorre toda a narrativa. Nos relatos sanguinários da dominação do Zaire, nas revoltas contra a ditadura levadas a cabo pelo «BMS», em Dakar, no próprio Elimane «a colonização semeia entre os colonizados a desolação, a morte, o caos. Mas também semeia neles o desespero de se tornarem naquilo que os destrói. Eis Elimane. Toda a tristeza da Alienação». Quanto à paixão, ela atinge tudo e todos.
Temos a paixão pela literatura, pelos seus mentores e pelos aspirantes a escritores. A literatura tida na sua plenitude, aquela que como escreveu  Nabokov, provoca «um estremecimento na espinha dorsal» e que reunia  Diégane e os seus amigos em grandes tertúlias. Aquela que é ode inspiradora e que inebriou o fugitivo Messias, qual todos queriam ser discípulos, «Lia sempre o Labirinto Inumano e pensava em Elimane. O meu único farol neste Oceano (…) o  rei invisível deste castelo». Paixão de Charles e Therèse por Elimane, paixão da poeta Haitiana por Siga D. e muitas outras «Ah, Elimane… sabes, até me interrogo se a minha mãe não se encontrava entre as suas amantes. A minha mãe estava muito enamorada do meu pai. Era crente, e a fidelidade para ela contava. Mas Elimane…». Haverá sempre um Elimane na vida de uma mulher? Talvez. E o amor, presente nas promessas de regresso, na relação entre Aida e Diégane, nos silêncios e no adeus «Esta será então a última viagem, o grande regresso. Vim para te dizer algumas palavras, ler algumas páginas, fazer amor contigo, se tiveres tanta vontade como eu, e dizer-te …. – Adeus- murmurei».  Que maneira linda e poética de nos despedirmos de alguém! Amor presente nas inúmeras cartas que aparecem neste labirinto, no qual procuramos a saída. Cartas de amor, daquelas que já não se escrevem, mas que desejaríamos receber, cartas-missivas e confessionais.  E é numa destas últimas que Diégane encontra a chave para entrar em Elimane e assim sair do labirinto, «A partir de agora, que tudo está cumprido e a cumprir-se, posso por fim voltar a casa». O Senegal, a casa de nascença, o quarto esotérico do tio (ou do pai?) a mensagem que é dirigida ao guia com o qual percorremos o labirinto e que ele tem que cumprir e cumpre, libertando assim (ou não) a alma do seu ídolo negro. E já fora desta rede de pesca a que chamamos labirinto, tecida com miríades de fios que apertam e libertam, somos confrontados com uma nova questão, de inspiração Shakesperiana, drama de qualquer «pessoa perseguida pela literatura: escrever ou não escrever»? Olhei a capa do livro já fechado, sorri, murmurei a minha opinião e fui jogar xadrez, para fazer xeque-mate ao Rei sanguinário da profecia ou, quem sabe, ser capturada pelo Rei negro Elimane e ser seduzida pelo seu mistério.
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Moahmed Mbougar Sarr
A Mais Secreta Memória dos Homens
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