O país no quintal de S. Bento

Como se escreve a História? Com os relatos das frentes de guerra e os seus heróis, ou das frentes de trabalho e os seus explorados? Das trincheiras das batalhas, com os seus mares de mortos, ou das fábricas com as fortunas que alimentam? Dos bailes sociais para as debutantes ou das bichas para a sopa dos pobres? Tantas dúvidas, interrogações, desvios e truques que cada autor há-de pôr ao serviço das suas teses…
Mas as teses fazem-se da teoria para os factos, na busca de dados, registos, informações que suportem o princípio ou os desafios e as questões lançadas à investigação. Num recente debate público entre historiadores, a propósito de mais uma História de Portugal, o seu autor chega a ser acusado por outro investigador de omissões ou esquecimentos que dissipam o equilíbrio da obra. Diz o atacante: “A ditadura caracteriza-se pela repressão sem muitos mortos”. O foco era o Estado Novo. O criticado lembra que “a História é plural”, portanto, passível de mais do que uma versão.
A análise do Estado Novo está na moda, em tempos de comemorar a implantação da República em Portugal, e a natureza do regime salazarista, as suas características, orientações e dimensão figuram entre as grandes interrogações, com as diversas interpretações. Logo, também, pelos dados que proporcionam diversos ângulos de análise. Diferente, por exemplo, será o Salazar resultante da leitura dos seus grandes discursos ou o conhecimento da sua relação com os mais próximos, o exército de servidores que lhe aparava o quotidiano.
Era o caso da enigmática leal serva que lhe acompanhou os passos desde Coimbra, no seu (de Salazar, e também de Cerejeira, futuro cardeal) desbravar do caminho para o poder ditatorial, contra a República que se debatia nas suas contradições de sempre. Era, como lhe chama agora Joaquim Vieira, “A Governanta – D. Maria, companheira de Salazar”.
Quatro palavras-chave neste título, com a duplicidade recaindo no atributo de “companheira”. Sim, houve vozes sobre essa relação e o romance que este livro desmente. Amor ardente terá havido, o dela, devoção, dedicação a um missionário ao serviço da (sua) pátria. Mas unidireccional, de Maria para António, que este estava noutro patamar – e até teve os seus amores, assistidos, amparados, mimados pela governanta de todo o seu tempo político.
Não será, porém, esse, um dos motivos mais fascinantes que a leitura do livro proporciona. A dimensão pessoal e familiar (porque um núcleo familiar ali se constituiu, na célula em que não falta a tão celebrada pupila conhecida por Micas) alimenta uma outra leitura da personalidade do “chefe do governo”, que moldou o país à medida da sua batuta. Ou seja, viu sempre um país à sua escala, avistado dos muros de S. Bento, principalmente a partir do momento em que um atentado do reviralho ali o fechou. Talvez tenha reduzido Portugal àquele quintal, um Portugal em pequenino.
E é um interessante micro-cosmos, esse, que remete inevitavelmente para o país que resultou de décadas e décadas de governação, não só do Portugal orgulhosamente só, mas também da “família” que, garante o livro, sempre recusou sentar à mesa do orçamento. Pelo contrário, e por vezes poderá parecer que se quer lavar a imagem do ditador (quando as questões de corrupção tanto se agudizam, como nos nossos tempos…), insiste em pagar do seu bolso as despesas da casa (mas não se entende até onde vai este princípio, se por exemplo inclui o motorista e outro pessoal, ou não).
O país que dali se avista, na sua economia de “guerra”, é aquele quintal em que D. Maria faz a reserva de capoeira, planta couves e outras hortaliças, se bebe o vinho trazido das terras de Salazar no Vimieiro e em Santa Comba, se recolhe o que o povo disponibiliza (ou Maria mobiliza) e faz chegar de camioneta a Lisboa. O pessoal de S. Bento acartava os víveres, depois, para a “residência oficial”.
Não faltará quem, ao ler estas e outras opções (como Maria a trazer carvão da linha, onde vai à praia com a Micas, pela dificuldade em obtê-lo em Lisboa, com o racionamento imposto pela Segunda Guerra Mundial), louve essa probidade, destaque a contenção de despesas, realce esse espírito da casinha portuguesa com gente pobre mas honesta. O problema é quando se vê o resultado…
Ou, melhor, é uma questão de ponto de vista, a interpretação fica ao cuidado do historiador, no limite do olhar de cada um. É uma questão do lado da barricada que abriga o observador. E não faltará quem suspire com a memória dos tempos de todas as “donas marias”, das grandes reservas de ouro nos cofres do Banco de Portugal, das riquezas coloniais…
Esquecendo, claro, o analfabetismo reinante, a repressão, a pobreza franciscana, as fronteiras fechadas – todas, as do país e as do horizonte de cada um. Mas é assim, o mundo. A governanta, essa, conheceu e aqui proporciona um outro olhar sobre o “botas”. É verdade, lá fica explicado o fascínio do homem por esta peça de calçado. Remendada, de preferência.

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Joaquim Vieira
A Governanta – D. Maria, companheira de Salazar
A Esfera dos Livros, 23€