O Outro somos nós

Por muitos considerado um dos melhores jornalistas do mundo – Gabriel Garcia Marquez classificou-o mesmo “o verdadeiro mestre do jornalismo” – Ryszard Kapuscinski escreveu algumas das mais belas páginas de não-ficção das últimas décadas, trazendo ao leitor um retrato pungente da vida do século XX. Cenários com gente dentro, pedaços de história, cultura e antropologia do “outro”, esse outro que (também) somos nós – quando visto do lado de lá – europeu e não europeu, branco ou negro, colonizador ou colonizado.
É sobre esse “outro”, expressão que se presta a muitos significados e distinções, do sexo à idade, à religião e à nacionalidade, que o jornalista e escritor polaco falecido em 2007 reflecte em “O Outro”, pequeno livro que reúne seis conferências proferidas em 2004 (excepto uma, de 1990). Quando vivemos numa sociedade cada vez mais global, Kapuscinski lembra que não é mais possível ignorar o outro.Fazendo uma viagem ao passado, Kapuscinski recorda a excepção da Europa na sua curiosidade pelo mundo e pelo outro, não só no desejo de conquistar e dominar mas também no interesse em conhecer e compreender. Algumas civilizações, pelo contrário, mostraram-se sempre desinteressadas pelo mundo exterior – África nunca construiu um barco para ver o que havia além dos mares que a rodeavam.“Resumindo, o choque das civilizações não é uma invenção da modernidade, antes acompanha toda a história da humanidade. Contudo, é preciso lembrar que o conflito, o choque, é apenas uma e não a única forma de contacto entre civilizações.”Mas o contacto entre civilizações, a busca pelo outro, a curiosidade não é uma característica frequente. Geralmente, o homem só abandona o seu “ninho” sob ameaça. Ou seja, se é “muito raro aquele que só viaja por vontade própria”, já os repórteres entendem a viajem “como um desafio, um esforço, uma luta, um sacrifico, uma tarefa difícil e um projecto ambicioso”.E embora uma biografia recentemente vinda a público, escrita por Artur Domoslawski, também jornalista polaco e amigo de Kapuscinski em vida, descreva o autor como alguém que ficcionava as suas reportagens para lhes dar mais dramatismo e impacto mediático, quem conhece livros como “Ébano – Febre Africana”, “O Imperador”, “O Império” ou “Andanças com Heródoto” (todos editados pela Campo das Letras) e ler agora “O Outro” terá, certamente, dificuldade em acreditar nessa versão sobre a personalidade e o trabalho de Ryszard Kapuscinski.Kapuscinski que recorda a reportagem literária como e género mais nobre do jornalismo – e também o mais colectivo, que “só um costume mais generalizado determina que assinemos o texto com um só nome.” Porque, na realidade, o texto da reportagem é “criado por dezenas de pessoas, nossas interlocutoras, encontradas pelos caminhos do mundo, que nos contam histórias da sua vida, da sua comunidade, de acontecimentos que presenciaram ou ouviram falar a outros.”E essas pessoas encontradas comportam em si, tal como nós, dois entes: o ser humano com alegrias e preocupações, mas também o ser humano portador de características raciais, de cultura, de crenças e de convicções. “Nenhum ente aparece no seu estado puro e isolado; ambos coexistem influenciando-se mutuamente.” E como esta relação não é estanque, antes dinâmica e geradora de tensões, o repórter nunca sabe quem vai encontrar – eis um dos problemas da profissão. Mas também um dos seus fascínios: “Cada encontro com o Outro é uma incógnita, um enigma e até, diria mais, um mistério.”_________
Ryszard Kapuscinski
O Outro Campo das Letras 11,55€