O marechal feito no 25 de Abril

As biografias constituem uma das formas mais vivas de reconstituir acontecimentos e períodos da História, dependendo do objecto de estudo a sua importância no esclarecimento (ou obscurecimento). Assim acontece no que se refere ao passado português, com referência ao exercício do Estado Novo e à sua marca de água, Salazar, e a marcos inevitáveis como a guerra colonial e a ruptura que esta proporcionou na estrutura do regime, com o culminar no 25 de Abril.
António Sebastião Ribeiro Spínola, general à época da Revolução de 1974, é um desses homens que, tendo crescido à sombra do regime, e com os pés nele bem assentes (por um lado era militar, e familiarmente os laços eram incontornáveis) proporciona um passado biográfico que ajuda a perceber muito do que à sua volta aconteceu. E, particularmente importante, esclarece (ou tenta) o que protagonizou.
Já são várias as obras sobre Spínola (directa e exclusivamente, ou não), e os seus pensamentos e acção militar. Um historiador, académico de primeiro plano, decidiu-se agora, apesar disso, a aprofundar o que já tinha sido publicado, a procurar mais fundo, a explicar melhor o que levou este homem feito no pensamento do Estado Novo (até pelo seu percurso militar) à ruptura, mesmo directa com Salazar, concretamente sobre a questão colonial.
Nunca é demais. E assim acontece agora, com a coincidência da publicação desta biografia no centésimo aniversário do nascimento de António de Spínola. E lá foi uma brigada inteira, de autarcas a Presidente da República, actual e ex, incluindo ministros, e ex, à inauguração de uma avenida lisboeta, que já o GPS reconhecia como tendo o nome do general/marechal mas não tinha placa – esperava-se que caísse a efeméride, voilá. E lá está a toponímia oficializada pelos discursos.
O actual Presidente da República aproveitou para os elogios de uso. Entre eles, ocorreu-lhe que o homenageado “lutou por um Portugal verdadeiramente democrático e pela construção de um Estado de Direito assente no respeito pela dignidade da pessoa humana”. E, claro, foi oportunidade para lembrar “a inteireza de carácter, o seu imenso amor à pátria, o seu arreigado sentido do dever, o espírito de leal camaradagem e o empenho que sempre colocou na defesa dos seus homens”. Cavaco Silva aproveitaria, contudo, e remeteu para “o juízo do tempo que se encarregará de lhe reservar na História o lugar que merece”.
Ora bem, a biografia agora publicada está mesmo na senda de deixar aos leitores as munições necessárias para a batalha de julgar quem teve um tão importante papel na História de Portugal, no século XX. Desde logo como cabo-de-guerra, jogo que não enjeitou na acepção mais terra a terra – ele ia mesmo para o mato com os seus homens, dava-lhes o exemplo e a força. Militarismo? Patriotismo? Alinhamento com as directrizes do regime? Heroísmo? Seja o que for, aos 51 anos deu um passo em frente e lá foi como voluntário para as profundezas de Angola.
Mas antes, em cargos de responsabilidade, incluindo a Guarda Nacional Republicana, Spínola tinha acumulado compromissos, não só internamente, com o regime. Ou seja, adoptou o posicionamento oficial de Salazar, interessou-se activamente pelos êxitos de guerra do nazismo, deu uma mão ao franquismo. Seria ingenuidade? Não, o sogro que o levava pela mão já era homem igualmente afecto ao Estado Novo.
A verdade é que, como aconteceu a outros, militares da mesma escola, com o mesmo juramento, parece que Spínola aprendeu no terreno o que valia uma guerra em que os valores ideológicos se sobrepujavam aos dados concretos, à força da história. E, contra isso, lá esteve ele ao lado de Venâncio de Deslandes quando o então governador de Angola e comandante-chefe das Forças Armadas teve um impulso autonomista como via de solução para o conflito instalado, um crescendo de guerrilha. Embora os êxitos militares…
E Spínola é referido por Luís Nuno Rodrigues como tendo dito na cara de Salazar o que era a semente do Portugal e o Futuro detonador do 25 de Abril. Aconteceu em 1968, já com o general em vias de nomeação para liderar o combate na frente da Guiné, e onde aplicaria um misto de acção militar e do que pensava ser o caminho político, pela conquista das populações.
Mas, estranhamente ou talvez não, Salazar não reagiu como doutras vezes, quando quem o desafiava saía do seu gabinete já com o diploma de demissão assinado, sem tal lhe ter sido mencionado. Não, ele confessou que Spínola devia embarcar o mais rapidamente possível para a Guiné, no que foi tido pelo militar como uma prova de que o Presidente do Conselho, em vias de cair da cadeira, se encontrava “verdadeiramente preocupado com a evolução militar da Guiné”. E ele era o salvador.
É toda uma vida, a relatada nesta obra, que permitem uma nova e diferente viagem pelo antes e pós 25 de Abril. Para esta época, anotemos a proximidade e reconhecimento que Soares lhe proporcionou, condecorando-o e abrindo-lhe o caminho para o marechalato. Apesar de alguns comportamentos estranhos para um oficial do Exército, como aconteceu na sua fuga (deserção? traição?) para Espanha no pós 11 de Março, com “recurso” a um meio de transporte do Estado.
E assinalemos o azedume que para sempre acompanhou Spínola perante os acontecimentos. Nomeadamente pela sua recusa de receber das mãos de Marcelo Caetano o poder, no Quartel do Carmo, que depois considerou um erro; ou, por exemplo, a derrota do 11 de Março, que acabou por nunca explicar capazmente.
Enfim, um bom bocado de história a ler, a sublinhar, a reter. Muito do que temos hoje talvez radique nas acções e legados dos que antes andaram com o mundo, o país, no bolso. Como ele, António Sebastião Ribeiro Spínola.

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Luís Nuno Rodrigues
Spínola
A Esfera dos Livros, 38€