O inimigo que o salazarismo gerou
A resistência ao salazarismo, mais de quatro décadas do século XX português, consagrou nomes que se perderam no tempo e hoje pouco ou nada dirão aos menos velhos ou estudiosos. Mas talvez alguma atenção ao que se passou durante nesse período ajudasse a desfazer muitas confusões (algumas deliberadas), más interpretações e juízos pouco ajuizados. O benefício recairia em questões como o próprio conceito de salazarismo, o colonialismo, a esquerda e a direita portuguesas, a nossa situação económica e social, ainda hoje, e o mais que nos aflige.
O caso do capitão Henrique Galvão é um exemplo de como a luta contra a situação – e os situacionistas que apoiavam a solução de Salazar chamada Estado Novo – suscitou empenho de gente das mais diversas extracções, repressão sem limites e sem olhar a quem, e indiferença, diga-se, de grande parte do povo raso que era quem mais sofria. Os que se atravessavam no caminho da máquina colonial-fascista provinham de classes e grupos profissionais mais esclarecidos, os advogados, médicos e engenheiros e os próprios militares – que acabaram por dar a machadada final, mas não como “direitada” que genericamente os enformou.
Galvão é talvez um dos nomes que mais firmemente se inscreve na folha de honra dos valentes e honrados que não hesitaram em dar a cara contra Salazar. O que mais valoriza esse posicionamento é que ele é um dos militares que esteve de armas na mão na instauração do 28 de Maio, que levaria ao Estado Novo e a Salazar, que ele saudava como solução anticomunista e anti-republicana. Foi homem do regime sem dúvidas, até certa altura, serviu-o das mais diversas formas, sobretudo no conhecimento das colónias, da sua situação e das suas dificuldades e problemas. E contra isto propôs soluções, fundamentou-as, denunciou os culpados da opressão que os indígenas sofriam, das arbitrariedades que lhes eram impostas por uma burocracia sem escrúpulos, exploradores com rédea livre e um colonialismo feroz e desumano.
A sua postura valeu-lhe, desde cedo, dissabores. Mas as amizades dentro do próprio regime, incluindo o acesso relativamente facilitado ao próprio “Presidente do Conselho” – Salazar –, permitiram-lhe prolongar no tempo a investigação, determinada e incentivada pelos ministros responsáveis pelas colónias, no sentido de detectar abusos e desvios, propondo soluções e punições, quando o colonialismo, e sobretudo o português, começavam a ser denunciados e atacados nas mais diversas instâncias internacionais e países (os Estados Unidos da América estavam entre os desagradados…).
Esse acesso privilegiado ao terreno permitiu-lhe reunir um conjunto de conhecimentos sobre os territórios dominados pelos portugueses, que verteu em livros de cunho diverso, da ficção ao documental. Caçador sem medo, viajante de grande fôlego, calcorreou milhares e milhares de quilómetros em missões que o levaram a geografias ainda desconhecidas dos administradores portugueses.
Por fim, já deputado das fileiras – únicas – do regime, é derrotado em S. Bento, quando regressa de um inquérito encomendado pelo ministro do pelouro colonial e denuncia face à Assembleia Nacional uma parte – apenas uma parte – do que apurou por Angola. Mas ele é acutilante e cego aos interesses particulares de quem aproveitou a Situação que ele ajudou a implantar primeiro, a manter e afinar depois. E chega a lembrar a um seu par essa diferença quanto a oportunismo.
E quando o regime começa a pô-lo de lado, com a recusa de voltar a incluí-lo na lista de deputados, ele segue em frente no seu modo de ser: homem de direita, até simpatizante da causa nazi, mas frontal, directo, sem medo. Mantém a directriz no que se refere às colónias, leva até ao fim a sua linha, de que a solução terá de passar pelo derrube do salazarismo, a implantação de uma democracia, e a partir daí auscultar-se as populações africanas sobre o futuro que desejavam. Este caminho afastava-o das soluções propugnadas pelos comunistas na clandestinidade e os movimentos de libertação que foram surgindo em diversas colónias. De resto, o anticomunismo nunca o desamparou.
Passou, pois, pelas prisões salazaristas, beneficiando embora de algumas intervenções em seu favor, de antigos correligionários que o não esqueceram. Conheceu assim Álvaro Cunhal numa das reclusões, conspirou mesmo a partir da clausura, beneficiando e aproveitando todas as nesgas que alguma benevolência lhe concedia.
Acabou por lograr a evasão do Hospital de Santa Maria, onde esteve internado durante muito tempo, por apresentar patologias que, temia o regime, podiam aniquilá-lo se ficasse sujeito às condições inqualificáveis do forte de Peniche, por exemplo. E Salazar não queria isso, apesar de tudo… até pelas repercussões. Esta fuga culminaria no pedido de protecção na embaixada da Argentina, de onde acabou por ser levado para Buenos Aires.
Bom, o perfil do homem manteve-se por essas paragens e continuou na senda do derrube do antigo herói, Salazar. E seus acólitos. E para não alongar muito esta história, acabaria por, a partir de terras sul-americanas e encontros aí propiciados, dar o golpe maior da sua vida de aventureiro – o assalto ao paquete Santa Maria, que baptizou de Santa Liberdade, e lhe serviu de instrumento para agitar pelo mundo a situação de repressão em Portugal e nas colónias. Depois, abreviemos, o desvio de um avião de carreira que voava de Casablanca para Lisboa, utilizando-o para lançar apelos à rebelião dos portugueses.
Pelo meio ficava o completo antagonismo que caracterizava a oposição portuguesa no exílio, com destaque para Humberto Delgado, que tanto apoio lhe deu inicialmente. Mas não só as estratégias de ambos eram diferentes para conseguirem o objectivo final, como o general acabaria por aceitar a aproximação aos comunistas, algo completamente impensável para Galvão. Por se tratar de comunistas e por defenderem soluções e caminhos diferentes dos seus, sobretudo relativamente às colónias.
Triste final, para ambos os militares. Delgado foi assassinado em Espanha, pela mão da Pide, Galvão viu degradar-se a sua saúde, já com os anos a pesarem-lhe. Valeu-lhe no internamento, no Brasil, o apoio concedido pelo Estado de S. Paulo, jornal em que acabou por trabalhar, sempre no seu afã de denunciar a situação portuguesa. Estava-se ainda a quatro anos do 25 de Abril…
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Francisco Teixeira da Mota
Henrique Galvão Um Herói Português
Oficina do Livro, 23,50€
O caso do capitão Henrique Galvão é um exemplo de como a luta contra a situação – e os situacionistas que apoiavam a solução de Salazar chamada Estado Novo – suscitou empenho de gente das mais diversas extracções, repressão sem limites e sem olhar a quem, e indiferença, diga-se, de grande parte do povo raso que era quem mais sofria. Os que se atravessavam no caminho da máquina colonial-fascista provinham de classes e grupos profissionais mais esclarecidos, os advogados, médicos e engenheiros e os próprios militares – que acabaram por dar a machadada final, mas não como “direitada” que genericamente os enformou.
Galvão é talvez um dos nomes que mais firmemente se inscreve na folha de honra dos valentes e honrados que não hesitaram em dar a cara contra Salazar. O que mais valoriza esse posicionamento é que ele é um dos militares que esteve de armas na mão na instauração do 28 de Maio, que levaria ao Estado Novo e a Salazar, que ele saudava como solução anticomunista e anti-republicana. Foi homem do regime sem dúvidas, até certa altura, serviu-o das mais diversas formas, sobretudo no conhecimento das colónias, da sua situação e das suas dificuldades e problemas. E contra isto propôs soluções, fundamentou-as, denunciou os culpados da opressão que os indígenas sofriam, das arbitrariedades que lhes eram impostas por uma burocracia sem escrúpulos, exploradores com rédea livre e um colonialismo feroz e desumano.
A sua postura valeu-lhe, desde cedo, dissabores. Mas as amizades dentro do próprio regime, incluindo o acesso relativamente facilitado ao próprio “Presidente do Conselho” – Salazar –, permitiram-lhe prolongar no tempo a investigação, determinada e incentivada pelos ministros responsáveis pelas colónias, no sentido de detectar abusos e desvios, propondo soluções e punições, quando o colonialismo, e sobretudo o português, começavam a ser denunciados e atacados nas mais diversas instâncias internacionais e países (os Estados Unidos da América estavam entre os desagradados…).
Esse acesso privilegiado ao terreno permitiu-lhe reunir um conjunto de conhecimentos sobre os territórios dominados pelos portugueses, que verteu em livros de cunho diverso, da ficção ao documental. Caçador sem medo, viajante de grande fôlego, calcorreou milhares e milhares de quilómetros em missões que o levaram a geografias ainda desconhecidas dos administradores portugueses.
Por fim, já deputado das fileiras – únicas – do regime, é derrotado em S. Bento, quando regressa de um inquérito encomendado pelo ministro do pelouro colonial e denuncia face à Assembleia Nacional uma parte – apenas uma parte – do que apurou por Angola. Mas ele é acutilante e cego aos interesses particulares de quem aproveitou a Situação que ele ajudou a implantar primeiro, a manter e afinar depois. E chega a lembrar a um seu par essa diferença quanto a oportunismo.
E quando o regime começa a pô-lo de lado, com a recusa de voltar a incluí-lo na lista de deputados, ele segue em frente no seu modo de ser: homem de direita, até simpatizante da causa nazi, mas frontal, directo, sem medo. Mantém a directriz no que se refere às colónias, leva até ao fim a sua linha, de que a solução terá de passar pelo derrube do salazarismo, a implantação de uma democracia, e a partir daí auscultar-se as populações africanas sobre o futuro que desejavam. Este caminho afastava-o das soluções propugnadas pelos comunistas na clandestinidade e os movimentos de libertação que foram surgindo em diversas colónias. De resto, o anticomunismo nunca o desamparou.
Passou, pois, pelas prisões salazaristas, beneficiando embora de algumas intervenções em seu favor, de antigos correligionários que o não esqueceram. Conheceu assim Álvaro Cunhal numa das reclusões, conspirou mesmo a partir da clausura, beneficiando e aproveitando todas as nesgas que alguma benevolência lhe concedia.
Acabou por lograr a evasão do Hospital de Santa Maria, onde esteve internado durante muito tempo, por apresentar patologias que, temia o regime, podiam aniquilá-lo se ficasse sujeito às condições inqualificáveis do forte de Peniche, por exemplo. E Salazar não queria isso, apesar de tudo… até pelas repercussões. Esta fuga culminaria no pedido de protecção na embaixada da Argentina, de onde acabou por ser levado para Buenos Aires.
Bom, o perfil do homem manteve-se por essas paragens e continuou na senda do derrube do antigo herói, Salazar. E seus acólitos. E para não alongar muito esta história, acabaria por, a partir de terras sul-americanas e encontros aí propiciados, dar o golpe maior da sua vida de aventureiro – o assalto ao paquete Santa Maria, que baptizou de Santa Liberdade, e lhe serviu de instrumento para agitar pelo mundo a situação de repressão em Portugal e nas colónias. Depois, abreviemos, o desvio de um avião de carreira que voava de Casablanca para Lisboa, utilizando-o para lançar apelos à rebelião dos portugueses.
Pelo meio ficava o completo antagonismo que caracterizava a oposição portuguesa no exílio, com destaque para Humberto Delgado, que tanto apoio lhe deu inicialmente. Mas não só as estratégias de ambos eram diferentes para conseguirem o objectivo final, como o general acabaria por aceitar a aproximação aos comunistas, algo completamente impensável para Galvão. Por se tratar de comunistas e por defenderem soluções e caminhos diferentes dos seus, sobretudo relativamente às colónias.
Triste final, para ambos os militares. Delgado foi assassinado em Espanha, pela mão da Pide, Galvão viu degradar-se a sua saúde, já com os anos a pesarem-lhe. Valeu-lhe no internamento, no Brasil, o apoio concedido pelo Estado de S. Paulo, jornal em que acabou por trabalhar, sempre no seu afã de denunciar a situação portuguesa. Estava-se ainda a quatro anos do 25 de Abril…
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Francisco Teixeira da Mota
Henrique Galvão Um Herói Português
Oficina do Livro, 23,50€