O diário de Gonçalo M. Tavares
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Um diário para não perder a razão, a memória dos dias loucos que ainda agora permanecem. Escrito entre 23 de Março de 2020 e 20 de Junho de 2020, para “infiltrar nas fissuras a alegria”, mesmo sabendo que “a alegria não basta, mas é necessária”. Tempos em que “Só os médicos se aproximam dos doentes. Só os padres se aproximam dos mortos. Duas formas de coragem.”
Os dias em que se redefinem conceitos, em que se olha para dentro, em que se tem de ficar dentro de casa, por vezes com o inimigo como parceiro “A maldade não é como a bondade. A bondade é previsível. A maldade não é previsível.”
Por isso “É preciso fechar o abutre numa sala. Só lhe dar coisas duras para ele morder. Fechar a porta por fora e sair, finalmente.”
Como viver só? Como aguentar isto? Sem abraços ou beijos. “Em poucas semanas se faz um maluco. Não é coisa tão difícil assim.”
“A partir de que idade aparece a coragem?” E o que interessa isso, o terror à noite até que nós cansamos dele. Será a coragem um cansaço? “Os mais fortes são os que quebram mais facilmente – como ensinam as parábolas do Oriente.”
Há que manter os olhos lá na frente, há que sorrir. Afinal, “O mau humor não é exemplo de santidade, afirma o papa.”
A entrada de 16 de Abril em memória de Rubem Fonseca, Luis Sepúlveda e Maria de Sousa.
Temos sorte quando podemos dizer: “A vida é transportar aquilo que desaparece.” A casa como “uma Arca de Noé que não sai do sítio.”
Também como Gonçalo abri livros ao acaso e escrevi sobre isso, tempos demorados, tempo para tudo sem poder fazer nada, “subornar a sorte através da paciência.”
O lema da rainha Isabel II “Nunca desistir, nunca desesperar”. Mas por outro lado “para que serve a beleza quando estão todos em casa?”
E onde encontrar inspiração? “Basta observares um rosto em silêncio durante minutos e tens uma história.”
“Dylan/Keith Richards/Ron Wood” no Live Aid, recordo tão bem isso, tinha catorze anos e os Stones estavam separados. “Uma nuvem com calças, dizia de si mesmo Maiakovski.”
“Substituir o nome mortais por efémeros”, “o adulto é aquele que percebe e depois morre.” Isto de perceber… “Deus e os homens, relação atribulada.”
Se houvesse tempo como o gastaríamos? Se ao menos a água lavasse o vírus, “depois de um banho, qualquer humano vem com uma luz que não é totalmente sua.”
Será sempre necessário estabelecer alguma filosofia de vida: “estabeleço por minha conta e risco uma estratégia para permanecer sereno no meio do tumulto e em tumulto no meio da pasmaceira.”
Quem me dera.
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Gonçalo M. Tavares
O Diário da Peste. O Ano de 2020
Relógio d’Água 19€