O condomínio do panóptico

Aquilo era uma casa de malucos, ali no meio de Lisboa, alcandorada sobre o miolo da cidade. Mas a coisa que se seguiu não é de malucos, é uma história de quem mede muito bem o terreno que pisa – ou que serve para multiplicar cifrões (de euros, que não têm cifrões, mas nem por isso valem menos).
Há já muitos anos, uma ministra da Saúde planeou entre outras possíveis poupanças, como lhe chamava, no sector que tutelava, a passagem a patacos de uma série de hospitais, entre os quais vários psiquiátricos. No rol estava este que prestava homenagem ao republicano Miguel Bombarda, mas também o Júlio de Matos, e, creio, o Conde Ferreira, embora não se ficasse por aí. A poupança, estava mesmo a ver-se e houve quem denunciasse, era uma manobra planeada em beleza: não faltariam para os respectivos terrenos empresários imobiliários, que aceitariam esse sacrifício de licitar e depois construir – condomínios de preferência. Sempre condomínios, muitos, centros comerciais…
O tempo de voltar ao ataque já andava por aí, de novo, talvez nunca tenha sido extinto. O Miguel Bombarda já fechou, sabe-se já que o destino do terreno, com vários hectares, será o de albergar uma data de condóminos, desta vez não catalogados pela clínica psiquiátrica, mas com a guita suficiente para comprarem espaço privilegiado. Os doentes, esses, como sempre, não serão prejudicados, dizem-nos – já na iniciativa dos anos 80 se garantia o mesmo, mas dá a impressão de que muitos dos sem abrigo que transbordaram para as ruas, com sinais de transtornos psicológicos, sobraram dessa “ordem de soltura”.
Mas vamos lá ao que era o Miguel Bombarda, tema de uma obra já com dois anos feitos, na verdade uma memória histórica, de alguém que, ligado à gestão hospitalar, tem investigação conhecida na área da história dos hospitais. Foi Vítor Albuquerque Freire, de resto, o autor de uma memória justificativa da classificação de imóvel de interesse público, em 2001. E é ele quem releva o interesse desse seu trabalho por ter revelado, na altura, aspectos até então inéditos, que facultam o conhecimento do projecto de arquitectura, de José Maria Nepomuceno, e de outros documentos.
Um livro importante, pois, não só pela concretização do encerramento da unidade hospitalar. Não passa, por exemplo, por cima das polémicas que sempre envolveram os passos dados em várias disciplinas médicas, e também no campo do tratamento das doenças mentais – de que é exemplo a contestação do trabalho e métodos de Egas Moniz. Mas explica como se chegou a essas instalações que em muito representaram um passo enorme na forma como se encarava e resolviam os problemas suscitados pela doença.
O panóptico foi um desses saltos no modo de encarar os problemas. No fundo, trata-se de uma instalação circular, uma prisão com uma nova forma, na via de uma escola funcionalista da arquitectura, ou seja, em que a beleza (forma) deve ser concordante com a função. E o projecto que viria a ser construído em Lisboa, no antigo hospital de alienados de Rilhafoles, contempla o modelo engendrado por um inglês para a construção de uma prisão circular, o “Panopticon”.
O arquitecto e o médico Miguel Bombarda trataram do resto, ou seja, da sua aplicação adaptada à situação concreta em Portugal: se crescia o número de dentes mentais, ainda no século XIX, punha-se cada vez com maior acuidade o problema dos chamados «alienados criminosos», ou seja, doentes mentais com enquadramento forense. Mas cedo, afinal a instalação de não «condenados» seria uma realidade, com o acordo de Bombarda. A forma circular garantia maior segurança, para os próprios internados, minimizando os casos de fuga, e para os trabalhadores do hospital.
Um mundo de património histórico que importa(va) preservar. O autor deste livro dá vários exemplos, em que sublinha o do gabinete de Miguel Bombarda, onde aliás já tinha sido instalada uma placa alusiva. Nesse conjunto de construções estão outras que merecem preservação.
Agora é esperar o que se segue. O que ficará de pé deste mundo que antes de ser hospital psiquiátrico já tinha sido casa da Congregação dos Padres da Missão de S. Vicente de Paulo, sobrevivente do terramoto de 1755, secularizado pela extinção das ordens religiosas em 1834, para servir inicialmente ao Colégio Militar. As obras que se seguiram, quando entrou em função hospitalar, levaram-lhe outras instalações como o Balneário ou Casa dos Banhos.
Agora, o panóptico, se subsistir ao condomínio de que se fala, há-de ter uma nova função, esperamos. A qual será… Bom, será que vão arrasar toda uma edificação que tinha resistido a 1755? Lembram-se de um presidente da Câmara de Lisboa que reclamou para si a função de «terramoto em Lisboa»? Pois.
Que interessa a Lisboa que chegou aos nossos dias e que afinal a caracteriza? Que venderemos nós aos turistas do futuro (quando tanto se fala em mobilizar divisas?) se continuarmos a demolir toda a cidade que tem mais de 40 anos, para fazer urbanizações iguais às que há por todo o lado? Vejam as avenidas novas, senhores! Isto está a ser um grande Rilhafoles, e os malucos andam todos por aí. Mas há uns malucos ricos que não se perdem. Vejam o livro, vós que estais sãos, para ver como se terraplena o passado.
______________________________
Vítor Albuquerque Freire
Panóptico, vanguardista e ignorado – O pavilhão de segurança do Hospital Miguel Bombarda
Livros Horizonte, 22,16€