O acto de ler
CRÓNICA
| Célia Gomes
Ricardo Piglia escreveu que «não há nada mais real nem, ao mesmo tempo, mais ilusório do que o ato de ler». «Ler», verbo sagrado à volta do qual orbita esta nada ilusória obra, iluminada por meteoros de desabafos de um escritor, por excertos do seu polémico livro, por acusações, por reflexões e histórias de vida. Histórias de vida confessadas a desconhecidos que passam a ser conhecidos e a entrar na intimidade do viajante como comboios na proximidade de apeadeiros. E não seremos todos nós viajantes no comboio da vida?
E é no interior de um comboio que se desenrola a história principal e se contam muitas outras que a completam e a desvendam. Num comboio noturno conhecido por Alicia, a narradora, por ser passageira habitual rumo a Edimburgo. Trajeto rotineiro que fazia de uma forma mecânica, sentando-se no local marcado, lendo, dormindo, observando e silenciando a sua voz até ao destino. Assim acontece com tudo e todos. Somos autênticos robots cumprindo rotinas, num pretérito imperfeito que almejamos que se torne perfeito, silenciando a voz e o grito. Até um dia ou uma noite em que o imprevisto sobe a bordo e se senta ao nosso lado interrompendo o bocejo da soma dos dias das noites.
O comboio é o meu meio de transporte de eleição e, na infância, era o meu brinquedo preferido. Lembro-me em especial de um, colorido , sem pista, nem carris, que eu empurrava no soalho imaginando viagens infinitas. Por isso foi fácil entrar no comboio de Alicia e juntar-me a ela que, sentada ao lado de dois desconhecidos, Terry e Bou, escutava Terry, o escritor Americano delatado por um jornalismo, por usar, sem autorização, o passado frágil de um amigo ( quase amante), para escrever o romance «Rocco». Romance polémico pela personagem e por levantar o véu à podridão da vida e dos seus relacionamentos . Podridão que Bou, aluno de mestrado de Terry, já tão bem conhecia por ter lido o livro e ter ouvido as críticas. Bou um fanático por magia e ávido por companhia, que, finda a viagem, deixa post- its na revista de Alicia e lhe aparece em Londres e a acompanha até à sua morada. «Bou ficou a dormir em minha casa e já não fomos ficção nem palavras, mas sim lençois e saliva espessa. Só por uma noite ou quatro». Haverá melhor magia?
Mas mágica é também a autora, Marta Pérez-Carbonell, pelo seu condão descritivo, pela leveza com que aflora o poder da literatura, as transgressões dos escritores, as fronteiras ténues entre a ficção e a realidade – «a vida não se arruína por alguém escrever uma história e incluir nela uma personagem parecida connosco. São as coisas reais que arruínam a vida» e, essencialmente, por no cenário de um só comboio e de uma só noite criar no leitor a sensação de estar a ler muitos livros e a visualizar muitas vidas em simultâneo. Costuma-se dizer que a «noite é boa conselheira», mas para além de boa conselheira também é boa ouvinte. E atentamente escutou Alicia revelar as suas fragilidades perante os novos amigos, a sua solidão, a sua orfandade amorosa e observou-a a viajar, através das palavras, a Socotra, ilha de ilusão e sofrimento. «O mar, o amor. Tinham a capacidade de provocar um bem-estar indiscutível, mas também podiam acabar connosco, se não nos mantivéssemos à tona». E à tona se manteve a nossa protagonista após o comboio apitar no destino. «Quando cheguei ao hotel, senti a passagem do tempo, que tínhamos passado anos num período muito curto. Que não tinha percorrido quilómetros, mas sim muitos dias com todas as suas noites». As noites de Rocco, das dúvidas do paradeiro de Hans e da interrogação de «que limites tinha Terry transgredido no seu livro». Tona e sofreguidão. Sôfrega para ler «Rocco» – e após a sua leitura concluir que «todas as histórias escondem sempre mais informação do que a que revelam, mas contar é sempre calar»; sôfrega para viajar para Genebra; sôfrega para seguir o rasto de Hans e todo o seu mistério. E é o mistério, presente na primeira vez que nos deslumbramos com algo ou alguém, que apalada a nossa vida, que nos conduz para o desconhecido e nos faz saltar para o abismo do amor.
No quadro «à passagem do comboio», Malhoa pintou crianças que debruçadas sobre as barreiras, observam com curiosidade, espanto e êxtase a passagem rápida do comboio. Também eu com curiosidade e espanto li o livro, vi passar rapidamente as suas páginas e, no final, desejei ficar agarrada à sua lombada imaginando outras viagens e recordando aventuras vividas em Genebra.
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Marta Pérez-Carbonell
Nada mais ilusório
Porto Editora 17,75€