Modo de usar o mundo segundo Bouvier

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

“O mundo modo de usar” do Nicolas Bouvier com quarenta e oito desenhos do Thierry Vernet na Tinta da China com tradução de José Mário Silva.

Sem exagerar, é um dos melhores livros que li nos últimos anos. O relato de uma viagem de Genebra a Passo Khyber num carro a desfazer-se em 1953. Muito bem contado, muito lindo, um livro que provoca inveja: são os melhores, impedem que cometamos o erro terrível de nos tornarmos escritores sem termos talento.

“Tínhamos dois anos pela frente e dinheiro para quatro meses. O plano era vago, mas, em situações como esta, o essencial é partir.” Porque “a partir de certo grau de penúria, não há nada que não se negoceie.” E ainda sobre este assunto “de todos os aspectos da penúria, um dos mais aflitivos sempre me pareceu aquele que torna as mulheres feias.”

Esta frase inesquecível “a coragem força-se, o entusiasmo não.” E esta ainda “e uma falta de curiosidade que nasce de uma vida já mobilada.”

“Nunca somos senhores do tempo perdido”, mas o que será isso de tempo que se perde, já se sabe o fim da viagem, e para isso temos “o comerciante de caixões” que “discute com o seu irmão, que ocupa uma loja vizinha e, por um feliz acaso, fabrica espingardas.”

Mas enquanto não chega a morte, chega o fim do dia e “na Turquia, como na Pérsia, assim que se concluem os assuntos do dia, toda a gente veste o pijama” para “aperfeiçoar até ao limite a arte de viver em paz.”

Temos também algumas respostas para actuais perguntas: “O fanatismo, sabe, é a derradeira revolta do pobre, a única que não lhe pode ser recusada.” Porque “as coisas correriam muito melhor se houvesse menos barrigas vazias.”

Somos tão diferentes uns dos outros, mas “só os países muito antigos conseguem exibir o seu luxo nas coisas mais corriqueiras.”

E que tal esta frase para início de romance: “Quando dezembro já ía a meio, a filha de um dos vizinhos envenenou-se por amor.”

Mas também muitos lugares, como o bairro de Rey em Teerão, “de onde partiram os Reis Magos”, ou o hammam de Rafsinjan, e ainda a alfândega de Mirjawé, onde no livro de registos quase se assina de vinte em vinte anos, o meu querido Baluchistão e, claro, Cabul, fundada por Caim, onde está enterrado Lemek, o pai de Noé.

O importante, no fim das contas, é saber que os muçulmanos gostam de viajantes pois ainda têm muito sangue nómada.

E a frase do livro: “a mim, mais do que qualquer outra coisa, é a alegria que me leva à certa.”
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Nicolas Bouvier
O Mundo Modo de Usar
Tinta da China  23,90€

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